"Alô, alô, senhores aviadores que cruzam os céus do Brasil, aqui fala Jorge Veiga, diretamente da Rádio Nacional. Estações do interior, queiram dar os seus prefixos para guia das nossas aeronaves".
O som vinha do rádio do vizinho, sintonizado na rádio Nacional. A voz era de Jorge Veiga, que antes de qualquer apresentação, sempre recitava o mesmo refrão, criado por Floriano Faissal, numa época em que as ondas sonoras das estações de rádio serviam para orientar os pilotos que percorriam os nossos céus mais azuis.
"Doutor de anedotas e de champanhotas, estou acontecendo no café soçaite...", a voz meio rouca do sambista tomava conta da calçada, por onde a molecada brincava, pés no chão e cabeça no ar.
Havia um calendário no inconsciente coletivo da meninada que, no tempo certo, fazia com que todos fossem para as ruas com a brincadeira da época na cabeça, como se tudo tivesse sido combinado de véspera.
Pipa, pião, bola de gude, bafo-bafo e outras brincadeiras da moda tomavam conta das ruas por uns tempos, num rodízio constante, que parecia engendrado por uma mente articuladora dos folguedos infantis. Mas, hoje, quero falar dos folguedos sem data, daqueles que surgiam, de repente, vindos não se sabe de onde e nem por que.
Esses folguedos eram articulações meio misteriosas, dos quais somente participavam alguns iniciados, que respeitavam rigorosamente suas regras, apesar delas nunca terem sido escritas ou reveladas publicamente.
Existiam comunidades que se formavam entre os moradores de cada rua, assim como grupos que se fechavam dentro dessas comunidades. A turma da rua Bonsucesso formava uma comunidade à parte da turma da Francisca Hayden e da Bias Fortes. Pareciam povos diferentes, vivendo em localidades distantes, com hábitos e costumes regionais. E, no entanto, eram ruas que se encontravam num largo, onde aconteciam as grandes peladas de domingo.
Uns, da rua Francisca Hayden, se tratavam por "coisórios", e tinham seus dialetos próprios. Os da rua Bias Fortes eram mais fechados e bem mais ensimesmados. Os da rua Bonsucesso, onde eu morava, tinham também suas esquisitices, cultuadas, não por todos, mas por alguns grupos.
- Mandrake aí ! Com esse grito, os membros de um desses grupos se obrigavam a ficar parados onde estivessem, até que ouvissem a nova ordem: Pode sair, licença !
A licença era o salvo conduto para ficar a salvo de uma ordem semelhante à que havia obrigado os demais a permanecerem estáticos, sem se mexer. Mandrake era o mágico das histórias em quadrinhos, que hipnotizava os vilões e fazia-os ver objetos mudando de formas e ficarem assustados, permanecendo estáticos, até serem presos.
Outra dessas brincadeiras sem data, e que podia aparecer e desaparecer, sem previsão de época, era o buxuxu. Dentro do grupo, quem sentasse, e não gritasse : "Buxuxu licença!", corria o risco de levar um soco no meio da coxa, e não podia reclamar. Brincadeira meio bruta, às vezes bem violenta, mas coisas de garoto, que não têm muita explicação.
- Tato aí ! Quem estivesse comendo algum coisa teria de dar um pedaço ao que gritou. Para se preservar dessa parceria indesejável, era preciso gritar, ao ver um do grupo :"Tato, licença!". Coisas que os garotos levavam a sério, como se fizessem parte de uma fraternidade secreta, na qual todos têm os seus deveres e obediências, que não podiam ser rejeitados ou questionados.
Enquanto os folguedos sem data iam acontecendo, as brincadeiras de época se sucediam, ocupando a mente da meninada, que não tinha muito tempo para pensar besteira, além dessas besteirinhas que eram as próprias brincadeiras e folguedos da nossa época.
Bandeira, garrafão e carniça eram brincadeiras noturnas, durante o ano inteiro, sem data marcada. Essas eram brincadeiras de menino, e só para meninos, do tipo "menina não entra".
Estátua, anel e chicotinho queimado eram brincadeiras mistas, que envolviam meninos e meninas, enquanto roda, pular corda e casamento japonês eram adoradas pelas meninas, e mal vistas pelos meninos. Coisas de homem e de mulher, que começavam bem cedo, desde os folguedos de rua e de quintal, e que afastavam os sexos para só voltar a reaproximá-los lá pela adolescência, quando a sexualidade começava a lançar suas iscas.
Era assim que acontecia naqueles tempos idos, quando vivíamos os anos 50, uma época mágica de Mandrakes e buxuxus, de pique bandeira e garrafão, e quando em qualquer terreno baldio ou meio de rua podia-se ver duas pedras marcando o gol, da pelada que ia acontecer no meio da tarde.
Na rua, a meninada, e nos lares, o rádio ligado na programação vespertina. "Alô, alô, senhores aviadores..." Era assim que, a gente brincava e se divertia muito, na Era do Rádio.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
6 comentários:
QUE BLOG MA-RA-VI-LHO-SO VOCÊ TEM!!!
VIM DESEJAR UM BOM NATAL À VOCÊ E AOS SEUS E QUE 2010 VENHA REPLETO DE ALEGRIAS
UM FORTE ABRAÇO
TIA CIDA QUE TE ADMIRA
Oi, Tia Cida, que bom que vc gosta do Na Era do Rádio!
Eu também gosto muito de relembrar os fatos da minha infância, que são relatados no blog.
Agradeço e retribuo os seus votos de Feliz Natal e desejo-lhe um 2010 com muita paz e felicidade.
Abraços.
Gilberto.
Oi, vendo essas crianças, me recordo do pão com goiabada que levava pra merenda... delicioso!
Ah! há um mês atrás pedi a um grande amigo pra buscar umas balinhas de groselha que meu pai me comprava todos os dias no armazém em frente ao colégio... Pena que ele, apesar de procurar pelas principais doceiras, não as achou... Que saudade!
Saudações fraternais
Oi, Orvalho do Céu :
Seja muito bem vinda ao Na Era do Rádio.
Recordar é viver, e quem não tem história para contar,não teve tempo para viver.
Quem hoje quer pagar o mico de levar pão com goiabada de merenda ?
Teriam sido as crianças que ficaram enjoadas, ou os pais que perderam o senso da boa educação ?
As suas balinhas de groselha foram trocadas por sofisticadas gomas de mascar que deixam os brancos e ingênuos chicletes Adams vermelhos de vergonha.
A moçada não tem idéia de como era bom viver com simplicidade na Era do Rádio.
Volte sempre para umidecer as flores deste meu jardim.
Abraços.
Gilberto.
Apesar de morarmos no mesmo bairro, minha vida de criança foi bem diferente.
Morar em rua de terra, e nela poder brincar não fazia parte da minha rotina, pois morei em apartamento ou em ruas de trânsito intenso.
E a grande verdade é que vida de menino sempre foi mais divertida, livre e aventuresca, restando para as meninas as brincadeiras de roda, e poucas mais.
Por que não morei na sua rua...
Beijo
Ora, minha Flora, bastava ter atravessado a Praça, andar um pouquinho e compartilhar das minhas travessuras de rua.
Os pés no chão eram mesmo coisas de menino, a pelada de rua também, mas roda, estátua e pique-esconde, as meninas do bairro participavam junto com os meninos, e era uma festa.
Que pena, que não apareceu por lá !
Mas, agora nós temos bastante tempo para as brincadeiras que quisermos, e na terra com os pés no chão.
Oh, vida boa, essa vida no campo !
Beijos, amor.
Gilberto.
Postar um comentário