quarta-feira, 11 de maio de 2011

A FARMÁCIA DO MEU PAI


Meus queridos leitores, começo ressalvando que meu pai não era farmacêutico, mas dentista. A farmácia dele era um aglomerado de remédios que tratava de todas as doenças da família. Ele era viciado em remédios. Se
não estivesse tomando algum remédio, ele não se considerava sadio.

Meu pai tinha em casa remédio pra tudo. E quando não tinha, tratava de comprar, tão logo um sinal distante de alguma doença ameaçasse um membro da família. Esses remédios penetravam não só no meu corpo, mas também na mente. E depois de se alojar no fundo dela, nunca mais saía da memória.

Eu tinha verdadeiro pavor da tal de embrocação. Bastava minha garganta inflamar, e lá tinha eu que abrir a boca para que meu pai pincelasse a minha garganta com uma tintura vermelha horrorosa. A sensação daquelas pinceladas sobre as amídalas era horrível, dando ânsias de vômito. Se a embrocação funcionava, eu não sei. Mas, era o remédio do meu pai para garganta inflamada.

Se aparecia catarro no peito, então a solução era cataplasma. A massa quente de antiflogistina grudada no peito era outro incômodo de arrepiar. Como se fosse um pedreiro, meu pai ia esticando a massa quente sobre o meu peito, e depois o envolvia com um pano, para que a massa secasse e endurecesse. Aquele reboco ficava preso no peito por horas, até que era retirado aos pedaços. Esperava-se que com cada pedaço daquela massa dura fosse embora um pouco daquela catarreira que tomava conta do meu peito de criança.

Se tu, caro leitor, estás com vontade de me perguntar se aquilo curava, pergunta logo, pois não faço floreios para te responder. Confesso-te que não sei se curava, mas eu sobrevivi, às doenças e aos remédios. E nem sei o que era pior, talvez as doenças incomodassem menos.

Lembro-me também que, de tempos em tempos, recebíamos em nossa casa, a visita de uma enfermeira que ia vacinar a mim e a meu irmão contra a varíola. Essa era uma ação suave, que se suportava sem nada além de um resmungo ou cara feia. A moça dava uns riscos na parte superior do braço, com uma espécie de pena de caneta, e mandava não lavar por algum tempo. Às vezes, inflamava e ficava uma ferida feia. Depois que secava, ficava uma cicatriz arredondada, que muitos carregavam no braço pela vida a fora.

Antes que tu me perguntes, caro leitor, eu te respondo que não sabia se havia epidemia de varíola naquela época, mas acho que já era o início dessa obsessiva vacinação, que tomou conta da sociedade, anos depois. É verdade que nunca tive varíola, mas nem sei se o teria, caso não fosse vacinado.

Agradeço até hoje, por não haver vacinas contra sarampo, catapora e caxumba, no meu tempo de criança. Assim, pude ter essas doenças em paz, e imunizar o meu corpo para outros males piores. Hoje, em dia, com tantas vacinas, não há sistema imunológico que se mexa, diante dos vírus modernos. Muitos jovens já nem devem possuir sistema imunológico ativo, de tantas vacinas, antibióticos e comprimidos que foram obrigados a tomar quando crianças. O organismo humano é assim mesmo, se não usa, atrofia, ou simplesmente se desliga.

Quando o nariz entupia, fazia-se inalação. Água fervida num copo de alumínio, uma tampinha cheia de inhalante Yatropan, um canudo de papel e ficava eu, com o nariz enfiado no buraco do canudo, a aspirar a fumaça quente do descongestionante nasal. Eu já vou, logo, afirmando que o danado do inalante ou inhalante funcionava mesmo, e após dois ou três minutos debruçado sobre o canudo, o nariz parecia ter desentupido. Depois de algum tempo, o entupimento voltava.

Um jeito menos burocrático, meu atento leitor, era passar o dedo no pote de Vicky Vaporub, e esfregar por dentro das narinas. Menos higiênico também, mas o resultado era bastante convincente. Além daquele friozinho gostoso, quando se respirava, frio e cheiroso. E assim, a gente ia combatendo os nossos achaques, com remédios inocentes e inofensivos, ou quase.

Devo confessar-te, meu leitor, que se o quadro piorasse, e a catarreira não fosse embora, as nádegas da criança seriam atingidas por picadas de injeção. Fugia-se o quanto era possível daquela ameaçadora agulha, que vinha acompanhada de cheiro de éter, que era esfregado na pele, antes da espetadela. Uma ou duas doses da vacina anticatarral de Bruschettini e o catarro era eliminado, e por ser uma vacina, pelo menos é o que alardeava o fabricante, ficava-se muito tempo sem ter nova gripe. Confesso-te que eu não ficava contando o tempo, mas talvez não fosse tanto tempo assim. Mas, hoje, que sei das verdadeiras causas das gripes, eu não pretendo fazer acusações levianas ao fabricante da vacina.

E o que o meu pai receitava da sua farmácia doméstica para as dores de barriga? Dor de estômago, o melhor era Chophytol, mas Atroveran também era uma boa pedida. Se o intestino soltasse, tomava-se Camboacy, acondicionado numa ampola de vidro com uma tampinha de borracha. Esse mesmo Camboacy era usado por minha mãe para fazer coalhada. Na Era do Rádio, meu amigo leitor, não existia iogurte, e a coalhada pode ser considerada a prima mais próxima do moderno iogurte.

E se o intestino ficasse preso, a conhecida prisão de ventre, o que tomar? Era só ligar o rádio, e lá vinha, a resposta pelas ondas sonoras da Rádio Nacional – Leite de Magnésia de Phillips. Se doesse a barriga, saco de água quente. Se o problema intestinal se complicasse, meu pai não tinha dúvida, era preciso dar mais uma espetada no bumbum do filho. E dessa vez, o receituário paterno indicava a injeção de Necroton, cujo efeito era quase imediato.

E assim funcionava a farmácia do meu pai, sempre com um remédio caseiro para tratar dos filhos e da esposa. Meu pai acreditava no poder dos remédios para curar, e não passava sem eles.

Confesso-te, meu leitor, que o filho não segue a bula do pai, preferindo as ervas, os métodos naturais, visualizações de imagens e uma homeopatia, quando o caso assim o recomendar. A farmácia do meu pai ficava dentro do quarto, a minha fica no quintal. Os laboratórios produziam as drogas que seduziam o meu pai, a natureza produz as minhas. E com o devido respeito ao farmacêutico eficiente que ele foi e às drogas com que fui tratado na infância, eu prefiro os meus chás de carqueja, de alfavaca, de limão, o própolis, o mel, o gengibre e a água pra beber e a água quente no saco para aliviar a dor.

Era assim que as famílias se automedicavam na Era do Rádio. E, tu queres saber de uma coisa, meu ingênuo leitor? Aqueles remedinhos caseiros podiam não ser tão eficientes quanto acreditava meu pai, mas nos poupava dos modernos efeitos colaterais que matam mais do que as doenças que combatem.

A medicina, hoje em dia, condena tudo que se fazia na Era do Rádio, para tratar das doenças infantis da época, mas a verdade é que eu sou daquela geração, e eu sobrevivi. E por fim, eu te confesso, amigo leitor, tinha-se menos recursos, mas éramos mais sadios e bem mais felizes, naqueles tempos que se convencionou chamar de Era do Rádio.

13 comentários:

orvalho do ceu disse...

Olá, Gilberto
Pensa que não me recordo de alguns destes medicamentos???
Impossível, meu irmão!!!
Maravilhosa a sua postagem e eu me amarro nesse tipo de recordação salutar... Obrigado pela possibilidade.
Abraços fraternais

Gilberto Gonçalves disse...

Oi, Orvalho:
Quem viveu na Era do Rádio, não pode esquecer os medicamentos caseiros.
Bons tempos, minha amiga, quando os remédios eram ingênuos, e não tinham os riscos das drogas dos tempos modernos que assustam com os seus efeitos colaterais.
Um abraço.
Gilberto.

Lucia disse...

Olá amigo!
O nome daquela tintura vermelha horrorosa que seu pai "embrocava" sua garganta era Collubiazol. Efeito imediato.Também servia para as crianças pintarem, com um algodãozinho colocado na ponta de um palito (não existia cotonetes)as bolhas da catapora para não deixar marcas. Ou será que era estrategia para ocupar as crianças?
Bem, o fato é que funcionava.
ABRAÇÃO
Lúcia (da Furiosa)

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida amiga Lúcia, que boa surpresa!
Quer dizer que a sua memória anda bem melhor do que parece. O tal "alemão" já não é mais nenhuma ameaça, como parecia.
Lembrou-se do Collubiazol, que eu não fui capaz de recordar. E assim fizemos mais uma dupla, não musical como nos velhos tempos, mas dentro da Era do Rádio.
Eu não sei se fui pintado, quando tive catapora, mas, pensando bem, eu acho que sim.
Viva o Collubiazol! Mas, abaixo a embrocação.

Um abraço minha amiga.
Gilberto.

Gilberto Gonçalves disse...

Lúcia Costa disse:

Lembrei, caro Gilberto, da UROTROPINA. Ou não fez parte da Farmácia do seu pai? Era um comprimidinho, parecido com as pastilhas de cânfora (mas, nada mais de semelhança) que se dissolvia em 1 litro d'água para ir tomando durante 1 dia por ano. Diziam que era para fazer uma limpeza nos rins. Falavam: dar uma ducha nos rins.
ABRAÇÃO
Lúcia"

Gilberto Gonçalves disse...

Minha amiga Lúcia:
Essa UROTROPINA não fazia parte da Farmácia do meu pai.
Acho que até sei a razão: rins nunca foram os fracos da família.
Estômago, intestinos, garganta e os pulmões eram tratados lá em casa, mas os rins ficavam de fora das mazelas da família.

Abraços.
Gilberto.

Strega Mamma disse...

Oi, Gilberto !
Sabe o que descobrimos recentemente ? parece "magia", mas foi indicado pelo dermatologista que nos atende , e não é nada velha...como a família é super alérgica ( é que tem tanta química hoje que o organismo rejeita tanta porcaria!!!) ele recomendou-no o uso de leite de magnésia como...DESODORANTE !!! A composição dele impede que se crie as condições para que as bactérias que provocam o malcheiro se desenvolvam . Simples assim. Sem perfume, não mancha e é quase de graça !!! Quem quiser experimentar...Na era do rádio as coisas eram mais simples...Bjs !

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida Liz:
As coisas mais simples sempre são melhores. Quanta mais se complicam, piores ficam.
Imagine só, chegar num Carrefour e pedir desodorante Leite de Magnésia.
Quem cuida das prateleiras vai ficar louca, pois a maioria das jovens nunca ouviu falar desse tipo de leite. Leite de que mesmo, senhora?
Com que perfume? Spray ou...? Quem é o fabricante?
E dizer que não precisamos de nada daquilo que está exposto por sobre as prateleiras. Basta-nos um vidro de Leite de Magnésia de Philips e estamos protegidos contra o mau cheiro do suor pelo dia inteiro.
Eu uso o Polvilho Granado, que é um pó que tem o mesmo efeito.
As coisas na Era do Rádio eram...digamos que mais simples.

Grato pelos sábios comentários.
Abraços.
Gilberto.

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Eu vivenciei várias coisas que você mencionou!!!
Beijos!

Gilberto Gonçalves disse...

Oi, Sônia:
Os tempos mudaram. E tem muito remédio antigo, melhor do que os venenos que estão sendo receitados.

Um abraço.
Gilberto.

Fuad Jorge Alves José disse...

Remédios velhos além de serem eficientes, pois foram inventados em uma época que a medicina ainda se preocupava em prevenir e manter as pessoas saudáveis, não pagam mais "royalties" e portanto são mais baratos. Gastar pouco e manter a saúde é tudo que a indústria farmaceutica não deseja.

Gilberto Gonçalves disse...

Sábias palavras, meu caro leitor.
Se tem uma coisa de que me orgulho é ter leitores deste seu nivel de consciência e sabedoria.
Um abraço.
Gilberto.

Anônimo disse...

Velhos tempos. Velhos dias.Eramos felizes e nãp sabiam. Parabéns pela beleza de seu .texto, envolve o leitor.