terça-feira, 18 de maio de 2010

É HORA DO LANCHE

Meus nostálgicos leitores, não esperem de mim, neste texto, reminiscências que os levem a recuar no tempo e reviver fatos marcantes de suas vidas, naqueles tempos da Era do Rádio.
Reservei este espaço para lembrar momentos muito íntimos da minha infância, quando à volta da mesa, na sala de jantar, minha mãe recebia suas irmãs para um lanche farto e uma fartura de papos furados, regados a saborosas xícaras de café e um delicioso Bolo da Prima.
Na época, eu não entendia bem o porquê de se chamar da Prima, aquele bolo que era comido por todos nós, sem a presença de qualquer prima, nem minha, nem delas. Mais tarde, só bem mais tarde, desvendei o enigma, o bolo fora batizado por alguma razão em homenagem a uma prima, talvez de quem houvesse criado a receita. Isso, porém, em nada contribuía ou atrapalhava o saciar da gula daqueles que se satisfaziam seus paladares com o macio e saboroso Bolo da Prima.

As irmãs falavam alto, como era comum na família, e riam às lágrimas, contando casos de parentas ou de vizinhas, no velho e tradicional estilo das fofocas inocentes, sem más intenções ou maiores conseqüências.
As irmãs eram quatro, mas as mais assíduas eram minha mãe, Isabel, e minhas tias Irene e Edite. As três faziam tal algazarra que talvez dessem aos vizinhos a impressão de que brigavam enquanto lanchavam ao redor da mesa.
Nos dias das visitas vespertinas de minhas tias, o rádio ficava desligado, pois nada poderia atrapalhar o encontro das irmãs quando colocavam a conversa em dia.
A tia Amélia, a quarta irmã, a mais nova delas, não era uma presença muito notada nesses lanches da tarde, não que não houvesse afinidade com as outras, mas talvez por ter um gênio mais reservado e menos afeito a esses encontros.
A tia Irene era a mais velha e a mais engraçada de todas, pois tudo que ela falava, desde as coisas mais sérias, e talvez principalmente elas, faziam as outras duas caírem em gargalhadas.
A tia Edite tinha um jeito meio misterioso de contar os fatos, por mais banais que fossem, e levava as outras duas ao suspense, até que riam umas das outras, sem nem saber a razão.
Eu ficava meio de lado, às vezes distraído com algum brinquedo, outras vezes sentado à mesa com elas, só ouvindo e rindo quando todas riam.
Os meus olhos ficavam grudados no Bolo da Prima, que logo seria servido com uma fumegante xícara de café. Naqueles dias em que as irmãs se reuniam dispensava-se o pão, já que o bolo era suficiente para acompanhar o café.
A hora do lanche, talvez pela importância que minha mãe dispensava a esse ritual da tarde, ficou marcada em minha memória. E mais do que isto, passou a ser a refeição mais prazerosa do dia.
Nas outras tardes, sem as irmãs presentes, minha mãe me pedia para comprar pão, enquanto preparava o café. E lá ia eu, correndo como fazem as crianças, que parecem estar sempre com pressa para chegar a lugar nenhum. Entrava na padaria, sentia o aroma do pão fresquinho, pedia duas bisnagas, e voltava correndo, abraçado a elas e sentindo o calor do pão quente junto ao corpo.
Entrando pela porta da sala, eu era recebido pelo aroma do café que estava sendo coado na cozinha, e quase pronto para ser provado e aprovado. O relógio marcava invariavelmente três e quinze, três e meia, quando sentados à mesa fazíamos o lanche da tarde.
O rádio, sendo um dia comum, estava ligado em algum teatro da tarde ou num programa musical, e se fosse sábado, desde as 3 horas, estava sintonizado na Rádio Nacional, no Programa César de Alencar.
Durante o restante da semana, ouvia-se o Programa César Ladeira, Programa Manoel Barcelos, O Trem da Alegria com a Yara Salles e o Héber de Bôscoli e A Felicidade Bate à sua Porta, também apresentado pelo mesmo casal.
Terminado o lanche, a pelada na rua estava à minha espera. A bola, com seu barulho tradicional, repicando na calçada, era o convite definitivo para o convívio com os colegas que já estavam escolhendo os times.
Par ou ímpar. Eu quero o Gilberto, eu quero o Lando; quero o Madir, eu quero o Sarrafo, e os times iam sendo formados até chegar ao último do grupo. Quase sempre, eu era o primeiro ou o segundo escolhido, pelas minhas reconhecidas habilidades com os pés.
As tardes, que começavam na mesa do lanche, acabavam, invariavelmente, com um grito de gol, o derradeiro que encerrava a partida. A noite já estava caindo, eu voltava para casa, suado, imundo, mas satisfeito com a vitória do meu time. Se perdesse o jogo, não perdia a alegria de ter passado mais uma tarde, junto com os colegas, chutando bola e marcando gol.
O parque de diversões começava a anunciar as atrações noturnas, tendo ao fundo o cavaquinho do Valdir Azevedo. O rádio da casa já estava ligado para os capítulos do Cavaleiro da Noite, As Aventuras do Anjo e Jerônimo, o Herói do Sertão.
E dizer que tudo começou com o lanche da tarde. É por isso que, até hoje, na hora do lanche, eu me transporto para aqueles tempos idos, que foi conhecido como Era do Rádio, e tenho a sensação de ouvir o repicar da bola na calçada e alguém falando o meu nome, enquanto os times vão sendo escolhidos.
Era assim que se passavam as tardes na Era do Rádio, ora recebendo a visita das tias, ora dedicado a um dever de escola, ora correndo atrás da bola. Mas, sempre cercado de muita magia, que vinha dos rádios ou do alto-falante do parque, num formato musical inesquecível, em ritmo de chorinhos, boleros e samba-canções.
Isso era suficiente para que passássemos uma tarde feliz. Não precisava mais nada, para mim bastava um rádio ligado, o lanche da tarde e uma pelada de rua, pois afinal de contas havia o enorme prazer de estar vivendo na Era do Rádio.

6 comentários:

Flora Maria disse...

Eu também participei de alguns lanches com as irmãs reunidas e o tradicional Bolo da Prima.
Mas muitas vezes era o Bolo de Fubá, que sua mãe tanto gosta.

Eu não ia brincar na rua, mas sempre tínhamos alguma coisa para fazer, e a loja do meu pai lá estava, cheia de coisas diferentes para ver e os livros empoeirados no jirau onde eu ficava horas procurando novidades.

Saudosos tempos idos...

Beijo

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida Flora:
Acho que vc pegou uma época em que as irmãs estavam mais comedidas, contidas pela idade. O borborinho era menos intenso e os temas suscitavam menos risos e paixões.
Às vezes, o bolo era de fubá, e só não mencionei isso porque eu nunca fui muito chegado a bolo de fubá.
Quanto à loja do seu pai, eu não a conheci nos seus tempos de menina, mas ela foi muito valiosa, anos mais tarde, para servir de ponto de encontro de nossos primeiros namoricos.
Beijos.
Gilberto.

ROSANGELA disse...

Primo Gilberto,
Adorei saber daquelas felizes tardes, com seus bolos da Prima e cafés cheirosos...onde minha avó Irene e suas queridas irmãs choravam de tanto rir...que delícia!
Felizmente, pude participar de alguns encontros familiares, já em outras décadas, e constatar a alegria que delas juntas surgia...
Que nostalgia...que saudade...
Que bom que você tem estas belas lembranças de um passado bonito!
Um grande abraço!!!

Gilberto Gonçalves disse...

Essas recordações, minha querida prima, são as verdadeiras e mais preciosas heranças que herdamos de nossos parentes.
Nada mais valioso que carregar na memória os bons momentos da infância, quando tios, tias e primos se reuniam na casa de um dos parentes para bater papo e rir da vida.
Quantas vezes, saíamos a pé e subíamos a ladeira da Av. Paris, para uma visita à tia Amélia e à tia Irene, e lá encontrávamos os primos e os colegas dos primos, e corríamos alegres pela vila e pelo quintal da casa da tia Amélia e do tio Sandoval.
Às vezes, eu ia para os fundos do quintal da casa da tia Irene e do tio Waldemar, e espiava por cima do muro, os jogos de futebol de salão na quadra do York.
Tudo isso está vivo na minha memória e é um tesouro que ninguém pode tirar de mim.
Que bom que posso passar-lhe esses meus sentimentos, que lhe fazem tão bem!
Um abraço.
Gilberto.

orvalho do ceu disse...

Olá, Gilberto
Reunião em família... convívio com entes queridos...
Vc fez um post tão requintado( no que diz respeito à foto linda )... me desculpe, mas parece que tem um toque feminino...
Sinto até hoje o gostinho delicioso dos diversos Natais... aniversários ou outros mais informais com tios, primos, avós...
O cheirinho do abacaxi com vinho preferido do meu papai...
Os doces em calda na cristaleira da minha vó Celina...
Os bolos e tortas de tias e primas...
Comer é partilhar do fruto do trabalho e do amor... que cada um tem no seu coração.
Hoje em dia tudo prontinho no super mercado... o descartável tomou conta de todos nós...
Oxalá não seja o nosso coração, que nos une com sabor particular, também jogado ao léo!
Abraço fraternal
Ah! Estou saindo, rapidamente, para comprar uns pãezinhos tipo franceses que terão gosto diferente depois de me deliciar com seu post. Parabéns!

Gilberto Gonçalves disse...

Boa tarde, Orvalho!
Acabei de passar o café, quer lanchar conosco?
Assim os mineiros nos convidam para entrar em suas casas e compartilhar daquele momento mágico de sentar à mesa com os amigos.
Na minha casa, quando ainda criança, meus momentos de aconchego no lar foram muitas vezes vividos sob o perfume de um café coado na hora e um bate-papo de minha mãe com minhas tias.
A lembrança de cenas com tamanha sensibilidade não pode deixar de ter um toque feminino, daí talvez ter identificado uma imagem mais sensível presente no texto.
As recordações têm uma suave conotação feminina, enquanto as ações físicas contêm um forte apelo masculino.

O homem que não possui um feminino ativo se torna bruto e insensível, do mesmo modo que a mulher desprovida de um senso yang se fragiliza e se anula.

Agora, eu também vou para o meu lanche, com café feitinho na hora e pães integrais que eu mesmo faço.
Volte sempre Orvalho.
Gilberto.