segunda-feira, 10 de maio de 2010

RESPEITÁVEL PÚBLICO







Sexta-feira de um dia qualquer, de um mês qualquer, de um ano da década de 50.
Tudo acabado entre nós, já não há mais nada...
A voz de Dalva de Oliveira caminhava pela rua empoeirada da minha infância, e chegava aos meus ouvidos na outra extrremidade da rua.
Era o altofalante do Circo que, entre um chamado e outro para o espetáculo da noite, desfiava os sucessos da época na voz da grande Dalva.
Que será, da minha vida sem o teu amor, da minha boca sem os beijos teus, da minha alma sem o teu calor... Enquanto ouvia a Dalva, pensava com os meus botões que seria muito bom poder assistir o espetáculo da noite.
Trapézio, pra lá e pra cá, lá no alto, me dava um frio na barriga só de me colocar no lugar do trapezista. Mas, havia a compensação para tamanho risco, a bela parceira que era aparada no ar e conduzida até a segurança da plataforma. O menino sonhava com o ato heróico de pegar a moça no ar e nunca deixá-la cair.
Os aplausos despertavam os sonhos da minha meninice, enquanto entravam no picadeiro o mágico e a sua partner. Sumiam coisas na nossa cara, e nós que nem bobos, só sabíamos bater palmas. Linda a partner, e que pernas! Meias escuras tentavam esconder a brancura daquelas pernas, mas nem a palidez da carne, nem as formas sedutoras, se deixavam encobrir por aquelas vãs tentativas.
Um pequenino grão de areia que era um pobre sonhador, olhando um céu viu uma estrela...
A voz da Dalva despertou-me do sonho, e me fez decidir que iria pedir para ir ao circo à noite.
É claro que omitiria as pernas da ajudante do mágico e o corpo da trapezista, e me fixaria nas graças dos palhaços. Assim seria mais convincente, e bem mais decente, pelo menos para os padrões da época.
Voltaria a rir do carro que explode, e joga os palhaços pra longe. Cairia na pilha do palhaço mau que provoca o bonzinho, e pede para meninada não avisar que ele está ali escondido.
Ai, ioiô, eu nasci pra sofrer, fui olhar pra você...
Era a voz da Dalva que, novamente, interrompia minhas fantasias. Sentado na beira da calçada, defronte da entrada da vila onde morava, eu sentia um misto de nostalgia e excitação.
A nostalgia ficava por conta do espetáculo circense, por outros que já havia assistido. A excitação vinha do lencinho branco, que a Dalva cantava e encantava a todos que passavam na rua.
Se fosse hoje, os valores seriam invertidos, saudade das músicas da Dalva e excitação por ouvir o carro de som anunciando o último dia de espetáculo.
Entrei, e tomei um banho caprichado. Vesti uma roupa de sair, não de missa, mas de meio de semana.
Na mesa do jantar, eu sugeri a ida ao circo. A surpresa não foi maior do que a alegria de receber um sim.
Respeitável público, boa noite.
E já deitado na cama, sem conseguir pegar no sono, ficava eu a recordar tudo aquilo que, durante a tarde, pus-me a sonhar.
A trapezista não era tão bonita como eu havia imaginado. Mas, a beleza da ajudante do mágico até que compensou. Na emoção dos truques, eu nem reparei nas pernas da moça. Azar, fica para uma outra vez!.
Os palhaços eram bons, mais engraçados do que os do circo anterior. A explosão do carro foi mais alta, parecia de verdade. E aquele palhaço vilão, que raiva!
Acho que valeu a pena.
Lá se foi mais um dia da minha infância, com música, circo, sonhos e a esperança de um amanhã ainda mais feliz.
Era assim que os meus dias corriam, meus pensamentos voavam e meus sonhos me embalavam na Era do Rádio.

6 comentários:

Flora Maria disse...

Frequentei os mesmos Circos que v., já que moramos no mesmo bairro, mas eu não gostava muito não.
Lembro que meus pais compravam o camarote - lugar para 4 pessoas - e eu e minha irmã ficávamos na frente, bem "de cara" para os palhaços, animais e as demais atrações. E a vergonha e o medo que eles viessem perto de nós ? Meus irmãos menores ficavam no colo dos pais, e eu bem que queria trocar de lugar com eles.
Traumas de uma menina tímida...

Ótimo texto, belas fotos, meu querido "fiel depositário da história da nossa infancia."

Beijo

orvalho do ceu disse...

Olá, sabe de uma coisa? Vou dizer:
ler seu post sempre me vem à tona muita saudade... não participei dessa época mas me reporto a ela pois meu pai e tios me contaram muita coisa linda dos velhos tempos e eu aprecio tudo do passado, coisas de temperamento...
Particularmente, gosto muito de circo e o netinho agradece, quando vamos...
Continue a alegrar nosso coração com tantas lembranças boas!
Obrigado
Abraços fraternos e saudosistas...

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida Flora:
O seu nº 11 brilha tanto que, talvez corresse mesmo algum risco, sentada lá na frente.
O leão podia ficar ofuscado pelo seu brilho e saltar em sua direção. Os palhaços poderiam vir fazer graça na sua frente. O mágico poderia escolhê-la para ajudá-lo a fazer objetos desaparecer, e pombas surgirem da cartola.
Acho que havia motivos para os seus receios, até porque quanto maior a timidez maior a atração exercida sobre si.
Eu ficava no meu canto, quieto e calado, observando e analisando, sem medo e sem coragem, só vendo.
Se fôssemos juntos, eu seria o seu herói, e o seu medo passava.
Mas, ainda não era o nosso tempo.
Beijos.
Gilberto.

Gilberto Gonçalves disse...

Oi, Orvalho, que bons são os seus comentários, tão sensíveis ainda que falando de uma época que não viveu.
As pessoas sensíveis e emotivas são assim mesmo, elas pagam caro por seus apurados sentimentos, pois tanto extraem prazer das coisas belas, como choram e sofrem com saudades de um tempo distante.
Sinto-me muito feliz por despertar tão bons sentimentos em pessoas que recordam com saudade de um tempo que não viveram.
Aguarde que tem mais recordação vindo por aí.
Abraços.
Gilberto.

orvalho do ceu disse...

Olá, Gilberto
É com muita alegria que passo para convidar vc a participar da BLOGAGEM COLETIVA ESPIRITUAL que foi pré lançada no meu blog dia 12 e está sendo divulgada hoje, dia 13
SUA CONTRIBUIÇÃO NOS SERÁ PRECIOSA...
ENTRETANTO,FIQUE À VONTADE!
Abraços fraternos

Gilberto Gonçalves disse...

Oi, Orvalho, agradeço o convite.
Conte com a minha adesão a esta sua idéia e esteja certa que é uma iniciativa por demais louvável, num momento de tantos questionamentos por que passa a humanidade.
A minha participação será através do meu outro blog o Alma Mater, já que este aqui tem uma temática específica relacionada aos meus tempos de criança Na Era do Rádio.
Aguarde a minha confirmação para o seu email, conforme solicitou em seu comentário.
Um abraço.
Gilberto.