terça-feira, 29 de abril de 2008

Um sábado perdido no tempo

O relógio marcava 3 horas da tarde, de um sábado qualquer da década de 50. Os aparelhos de rádio estavam todos sintonizados numa só estação, a RádioNacional.
A rotina da nossa casa não se alterava, mas a nossa atenção, pelas próximas 4 horas, estaria toda voltada para o som do rádio.
O locutor anunciava o patrocinador - Pastilhas Valda. A orquestra da Rádio Nacional, sob a regência do maestro Chiquinho, invadia nossos lares com a introdução de uma canção, cujos versos seriam cantados, logo a seguir, por um vocal muito afinado.
"Esta canção nasceu pra quem quiser cantar, canta você, cantamos nós até cansar. É só bater, e decorar. Pra recordar vou repetir o seu refrão. Prepare a mão, bate outra vez, este programa pertence a vocês".
A última frase era o sinal que todos aguardavam para saudar o maior animador de auditório de todos os tempos - César de Alencar.
"Alô, alô, alô." Com um entusiasmo contagiante e uma loquacidade verbal incontrolável, entrava por nossos ouvidos, a saudação inicial dirigida ao auditório, aos ouvintes de casa e ao patrocinador.

Durante as 4 horas seguintes, um auditório lotado com cerca de 600 pessoas, ficaria sob o efeito hipnótico da voz de César de Alencar, num matraquear incansável, dialogando com o auditório, conversando com seus convidados e apresentando os grandes cartazes do cast da Rádio Nacional.
Sucediam-se astros e estrelas famosos, os cantores da nova geração, os sucessos musicais da semana e o criativo e intelectual Romário, o homem dicionário.

O auge do programa, que levava o auditório ao delírio, se dava com a apresentação daquela que era "a minha, a sua, a nossa favorita - Emilinha Borba". A orquestra tocava o refrão do reclame das Pastilhas Valda - "Pastilhas Valda, Pastilhas Valda...", e o auditório, no mais puro êxtase, exclamava a todo pulmão - "Emilinha é a maior". A orquestra repetia a deixa, e o auditório não se fazia de rogado, e gritava ainda mais forte - "Emilinha é a maior".
A noite do sábado já havia chegado, quando os últimos acordes da orquestra davam por concluído mais um inesquecível Programa César de Alencar.
A lida da casa continuou por toda a tarde, com os últimos retoques da faxina de fim de semana, o jogo de botões no chão encerado, o lanche ritualístico na hora aprazada e todo o ritual familiar da época.
A minha mente de menino viajou pelas suas costumeiras fantasias. Os meus olhos de criança observaram a bolinha de rolha empurrada por um botão em direção ao gol. As minhas pernas correram atrás de uma bola ou pelos corredores da vila, simplesmente para queimar energia. Os meus ouvidos, porém, não conseguiam se desligar do som ambiente, vindo dos rádios de toda a vizinhança, que reproduziam as canções, as brincadeiras e os jingles ingênuos que buscavam vender os produtos dos anunciantes.
Às 7 horas da noite, desligava-se o rádio e sentava-se à mesa para o jantar. O sábado estava prestes a terminar, depois de mais um Programa César de Alencar.





sábado, 12 de abril de 2008

16 de julho de 1950 - um dia para ser esquecido






Era domingo, um dia cinzento e enfarruscado.




O tempo, desde manhã cedo, já parecia prenunciar o que estava por vir.




O ano era 1950, e o dia, 16 de julho.




Acordei ansioso, com um olho na missa e outro no rádio.




Desde 24 de junho, quando o Brasil estreara contra o México, a garotada não tratava de outro assunto, que não fosse futebol.




Os meus times de botão estavam engalanados, cada qual representando uma seleção. Os goleiros de caixa de fósforos ganharam roupagens novas, em papel colorido com os escudos das respectivas seleções estampados bem no centro. Em cima de cada botão estava colado o nome de um jogador.




Ajoelhado no chão do quarto, eu paletava os meus botões, chamando-os pelos nomes, irradiando o jogo, como se fosse um Oduvaldo Cozzi, numa cabine de rádio do recém inaugurado Estádio do Maracanã.




Entra em campo o Brasil, com Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Maneca, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Eu sabia o time de cor, com todas as alternativas possíveis. Sai o Maneca, entra o Friaça. Eli, Rui e Noronha, na defesa, Alfredo e Baltazar, no ataque, foram dando lugar para os que se firmavam em suas posições.




Os jogos, ou as pelejas, como se falava na época, foram acontecendo, e desde a estréia da nossa seleção, no dia 24 de junho, contra o México, a sensação era uma só - a Copa do Mundo é nossa.




Ganhamos do México de 4x0, e um leve tropeço contra a Suiça, um empate de 2x2, não abalaria o nosso entusiasmo, até porque o melhor ainda estava por vir.




A bola de couro rolava no gramado do Maracanã, a bolinha de rolha deslizava pelos tacos encerados do meu quarto, antes de estufar a rede e provocar um entusiasmado grito de Goooollll!!!!




A seleção do Brasil era absoluta nas duas canchas, como os locutores denominavam o campo de jogo.




Os adversários foram sendo batidos, um a um, a Iugoslávia por 2x0, a Suécia por 7x1 e a Espanha por 6x1.




No sábado, dia 1 de julho, tive a minha primeira frustração na competição, ao ficar de fora do grupo de vizinhos, dentre os quais meu pai, que foi assistir à vitória sobre a Iugoslávia. Bem que eu apelei, mas foi em vão.




Os dois resultados seguintes, vitórias de goleada sobre a Suécia e a Espanha, deixaram em todos a certeza do título.




O Maracanã, no dia 13 de julho, recebeu uma multidão de fanáticos torcedores, que aos berros, numa euforia sem precedentes em jogos de futebol, comemoram a goleada de 6x1 sobre a Espanha, cantando Touradas de Madri, que havia sido um sucesso no carnaval de 37.




"Eu fui às Touradas de Madri,




E quase não volto mais aqui,




Pra ver Peri beijar Ceci,




Eu conheci uma espanhola,




Natural da Catalunha,




Queria que eu tocasse castanhola,




E pegasse touro à unha"




Os gols se sucediam e a cantoria não parou, enquanto o jogo não terminou.




Os jogadores de todas as seleções eram citados e recitados por mim, fanático por futebol, que projetava nos meus times de botões a fantasia de vê-los tocando a bola e fazendo gols, como jogadores de verdade.




A seleção espanhola goleada pelo Brasil era escalada de cor e salteado com Ramallets, Alonso e Gonzalvo II; Gonzalvo III, Parra e Puchades; Basora, Igoa, Zarra, Panizo e Gainza.




Após a vitória sobre a Espanha, a decisão seria com o Uruguai, no domingo, dia 16, mas as favas já estavam contadas. Quem iria temer o Uruguai, depois de enfiar 7 a 1 na Suécia e 6 a 1 na Espanha?




Na minha casa um balão verde e amarelo já estava pronto para subir aos céus, assim que o jogo terminasse. Meu tio caprichou na colagem de cada gomo daquela balão histórico, que deveria alçar vôo, enquanto todos nós gritaríamos a uma só voz : Brasil, Brasil, Brasil.




O Brasil perdeu e o balão pegou fogo. Uma tragédia !




O rádio contava a história da partida, e eu acompanhava cada palavra, criando imagens na mente, nas quais a bola rolava de pé em pé, de Zizinho para Jair e daí para Ademir que, a qualquer momento, estufaria a rede, num golaço espetacular.




O gol só saiu aos 2 minutos do segundo tempo, e foi o Friaça, e não o Ademir, quem me fez pular de alegria. O empate daria o título ao Brasil. Agora era só esperar o tempo passar, e quem sabe ainda fazer mais um ou dois, para que a nossa superioridade não deixasse dúvida.




Os gols sairam, mas não foram do Brasil. Schiaffino empatou aos 21 minutos e, aos 34, Ghiggia decretou a desgraça nacional. O Maracanã emudeceu, e depois chorou. O país vestiu luto, e lamenta até hoje a morte do sonho de ser campeão do mundo, dentro da própria casa.




Ainda me lembro do silêncio, depois do rádio desligado, com minha família atônita sem saber o que fazer.




O balão meio desconsolado aguardava-nos dobradinho num canto. Decidimos soltá-lo assim mesmo, mas o infeliz não suportou o peso da derrota, e se negou a subir, até que pegou fogo.




Era 16 de julho do ano de 1950, um dia que entrou para a história como o dia mais triste para o futebol brasileiro, um dia para ser esquecido.




Seria injusto para os vencedores, não deixar aqui registrados os nomes dos jogadores uruguaios que venceram na bola e na raça, capitaneados pelo xerife Obdulio Varela, que intimidou, gritou, ameaçou e saiu com a Taça debaixo do braço.




Maspoli, Matias Gonzales e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Andrade; Ghiggia, Julio Perez, Miguez, Schiaffino e Moran.