sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O início da invasão americana


Desde o primeiro dia do mês de setembro do ano de 1939, o mundo estava em guerra, com parte da Europa sendo ocupada pelas tropas alemãs. No dia 7 de dezembro de 1941, o Repórter Esso, "testemunha ocular da história", na voz do seu mais fiel locutor, o radialista Heron Domingues, anunciava que os japoneses haviam bombardeado a base militar americana de Pearl Harbor.
No dia primeiro de janeiro de 1942, em outra edição extraordinária, o Repórter Esso anunciaria que as tropas norte-americanas entravam na guerra. Os Estados Unidos da América do Norte, por causa do bombardeio japonês a Pearl Harbor, declararam guerra ao Japão e aos seus aliados Itália e Alemanha, provocando o maior conflito mundial de todos os tempos.

Esses fatos não fazem parte das minhas memórias de guri, já que o meu na
scimento só viria a ocorrer dois anos mais tarde, em fevereiro de 1944. Mas, as lembranças desses acontecimentos, que me chegaram por relatos e leituras, servem como preâmbulo para a introdução de meus comentários sobre uma das publicações mais famosas no mundo inteiro, a revista SELEÇÕES do Reader's Digest.
Transcorrido apenas um mês depois da entrada dos Estados Unidos na guerra
chega ao Brasil, no mês de fevereiro de 1942, a revista SELEÇÕES, que havia sido lançada em seu país de origem no ano anterior, com a intenção de oferecer "artigos de interêsse permanente condensado em formato de livro", como constava literalmente na página 1, do primeiro número publicado no Brasil.
Os povos no mundo inteiro, pelo menos daquelas nações que apoiavam os exércitos aliados, passaram a consumir com entusiasmo, e um exagerado patriotismo, os artigos repletos de exortações nacionalistas das páginas de SELEÇÕES.
O nº 1 da edição brasileira foi lançado ao preço de 2$000, valor monetário que se lia como dois mil réis, e teve na sua primeira página um artigo assinado pelo famoso romancista escocês A.J.Cronin, autor de clássicos como O Castelo do Homem sem Alma e A Cidadela.
Em su
a Edição de Livros, uma seção que se tornou famosa com o tempo, a revista contou a história de Madame Curie, a cientista polonesa, que junto com o marido, descobriu o rádio, um elemento químico de enorme importância no estudo da radioatividade.
No alto de sua capa, SELEÇÕES anunciava uma tiragem mundial de 5.000.000 de exemplares, o que certamente deveria ser um número astronômico para a época. Naquele momento estava tendo início a invasão americana no Brasil. Uma invasão sem soldados, nem tanques, mas que atingiria com grande eficiência as nossas ingênuas defesas, inflingindo grandes perdas às nossas raízes históricas e à nossa retaguarda cultural.

Naquele fevereiro de 1942, certamente não tivemos uma edição extraordinária do Repórter Esso, noticiando uma invasão sócio-cultural norte-americana ao Brasil, nem ouviu-se tiros e estrondos de bombas ameaçando os lares brasileiros. As consequências daquela guerra só foram sentidas anos mais tarde, quando percebeu-se que "o modo de vida americano" havia tomado conta de nossas vidas e ocupado nossas mentes e nossos hábitos.
A grande realidade é que
, desde que os norte-americanos entraram na guerra, eles passaram a ser vistos como grandes heróis, imbatíveis e quase imortais. A partir daí, as pessoas começaram a confundir os interesses do povo brasileiro com os do povo norte-americano, achando que tudo era a mesma coisa.

As revistas em quadrinhos exaltavam o poder da nação norte-americana e os feitos dos seus soldados. Surgiram super-heróis que expressavam todo esse poder, e que passaram a ser símbolos da liberdade e da justiça, idolatrados a partir da infância. Certos gibis da época, como Capitão América e outros, incutiam em nossas mentes infantis que, o que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil.
Na capa do primeiro número, em sua edição norte-americana, o Capitão América, simbolizando a própria nação norte-americana, apar
ece dando um soco em Hitler, num simbolismo que dispensa qualquer comentário.

Cada revista tinha o seu público alvo muito bem definido.
O Capitão América vendia a imagem da força do povo norte-americano às crian
ças do mundo inteiro que, sem terem noção do que estavam fazendo, passaram a imitar tudo que ele viesse a dizer e a fazer. Enquanto as crianças eram seduzidas com as artimanhas em quadrinhos, dessa sutil e engenhosa propaganda, os adultos eram atraídos para a leitura de artigos e textos condensados, que exaltavam a sociedade e as instituições norte-americanas, idolatrando suas figuras históricas.
As SELEÇÕES exerceram uma função notável de propaganda subliminar, incutindo nas mentes da classe média brasileira que os Estados Unidos da América s
eriam a nação em que todos deveriam confiar, para que se sentissem seguros e protegidos.
Essa política de boa vizinhança, na qual se deveria aceitar tudo que viesse do vizinho, sem questionar direitos ou valores, tomou conta da minha infância e me fez crescer ouvindo meus pais exaltarem o modelo
americano, desprezando todos os países que se insurgissem contra a liderança incondicional dos Estados Unidos.
Os meus heróis eram "cowboys", que não tinham nada a ver com a minha realidade infantil. Roy Rogers, Gene Autry, Rocky Lane, Hopalong Cassidy, Ken Maynardi, Rex Allen, eram nomes estranhos aos nossos ouvidos, porém figuras admiradas nos desenhos das revistas. As piadas eram estrangeiras, mas nós aprendíamos a rir delas, nem que fosse para estar sempre na moda. Gabby Hayes era um velhote manhoso e esperto, que fazia a gurizada rir com suas atitudes e trejeitos, que tinham tudo a ver com o jeito norte-americano de provocar o riso, e que foi sendo incutido em nossas mentes, como a melhor maneira de fazer graça. Annie Oakley era a mulher corajosa, que tinha uma pontaria certeira, montava a cavalo melhor do que muito homem e que possuía uma beleza de fazer inveja a qualquer menina.
Com isso, imitav
a-se o herói e a heroína que não tinham nada a ver com a nossa forma de vida. A figura de Búfalo Bill era exaltada como o corajoso batedor que matava índios maus, mas só os maus, e que eram quase todos, segundo o que a história nos contava.
Esses gibis e as revistas de SELEÇÕES fizeram parte da minha infância e juventude, sem que eu me desse conta das falsas verdades que eu vinha consumindo, como se fôssem padrões ideais de comportamento.
As mensagens de adulação ao povo brasileiro tomaram conta das principais propagandas, durante os primeiros números de SELEÇÕES, fato que, na época, ninguém se dava conta, já que estávamos em plena guerra, na qual o inimigo comum,
o nazismo de Hitler, tinha de ser combatido e eliminado a qualquer preço.
As propagandas nas páginas de SELEÇÕES eram mensagens de conteúdo político, buscando seduzir o povo brasileiro, fazendo-o acreditar que cada uma das empresas anunciantes era parte do poderio americano, que tinha como ideal pr
oteger as nações amigas.
A Westinghouse usava o título Em defesa da Liberdade, e afirmava : " A Westinghouse, empresa que assenta nos alicerces do espírito inventivo, reconhece na liberdade humana o maior fator capaz de, só por si, levar ao caminho do progresso a humanidade...Os produtos saídos das fábricas da Westinghouse são produtos da liberdade".
A Bausch & Lomb usava a
imagem de Simon Bolívar, sob o título O Libertador que Não se Libertou, alegando que ele "como latino-americano típico, escravizou-se para benefício daqueles a quem tinha libertado".
A RCA Victor falava aos "Bons Vizinhos em contacto mais íntimo que nunca", e prosseguia afirmando que a solidariedade deste hemisfério é agora mais vital do que nunca.
A Royal, a máquina de escrever nº 1 do mundo, dizia "fomos
sempre bons vizinhos do Brasil !"
A
Zenith homenageia Santos Dumont, que todos nós sabemos que não é considerado pelos Estados Unidos como o Pai da Aviação, com uma frase feita com nítidos interesses comerciais " O mundo renderá preito eterno à memória do audacioso Santos Dumont, filho imortal do Brasil."
A classe mais rica tinha o anúncio do novo Studebaker Skyway 1942, prometendo conforto e economia de combustível, o que era fundamental em tempo de guerra.

A invasão norte-americana ao nosso território começou ali, naquele ano de 1942, quando a propaganda de guerra entrou em nossos lares, as ingênuas famílias de classe média, que passaram a educar seus filhos segundo os padrões e conceitos convenientes aos interesses da sociedade norte-americana.
Com o passar do tempo, a guerra acabou, os territórios foram libertados, mas a população mundial jamais recuperou a sua plena liberdade. A invasão prosseguiu pelos anos seguintes e, ainda hoje, quase todos os povos do mundo sofrem com a inter
ferência dos interesses norte-americanos em seus hábitos de consumo. Lanchonetes, supermercados, lojas de departamentos, cartões de crédito, crediários, modas, modernismos, shopings, financiamentos, crédito fácil e outros vírus menos famosos, mas não menos perigosos, continuam contaminando a saúde de nossa sociedade, ainda atrelada aos interesses norte-americanos.
Na Era do Rádio, o lançamento da revista SELEÇÕES foi visto como um grande progresso no acesso às informações sobre o que se passava no mundo lá fora. O Repórter Esso noticiava os fatos da guerra, e nós, nos aprofundávamos sobre os acontecimentos, lendo SELEÇÕES.
Era no rádio que todos buscavam notícias sobre os bombardeios nazistas sobre Londres, mas era em SELEÇÕES que se buscava entender os motivos da guerra.
Era no rádio que se encontrava entretenimento para se esquecer que havia uma guerra, mas era em SELEÇÕES que se encontravam as piadas mais atuais nomundi inteiro.
Eu nasci no ano anterior ao do fim da guerra. Meus pais enfrentaram racionamentos e medos de um colapso de alimentos, que pudesse pôr em risco o futuro da família. Meus pais viveram momentos de aflição, entre as expectativas de novas batalhas e a proximid
ade da minha chegada a este mundo.
As estações de rádio só falavam da guerra, das batalhas e dos mortos.
Uma notícia, porém, deixou de ser dada, a da invasão norte-americana ao território brasileiro, com o lançamento de uma panfletagem americanista que se estende até os dia de hoje, cuja precursora foi a revista SELEÇÕES Reader's Digest.
Quando isso começou, eu ainda nem havia nascido, mas foi num mês de carnaval, do ano de 1942, ano em que os blocos de rua e os corsos saíram cantando "Ai, que saudades da Amélia", "Aos pés da cruz", "Emília", "Nega do cabelo duro" e "Praça Onze".
Dessa vez, eu acho que mergulhei demais no passado, mas, afinal de contas, esse espaço é da Era do Rádio, que começou bem antes de eu ter nascido. E, afinal de contas, tudo que aconteceu naquele ano de 1942 afetou de alguma forma a minha vida mais tarde. Ainda bem que, apesar da guerra, existia o rádio para alegrar o ambiente, e em fevereiro sempre tinha o carnaval com suas marchinhas, serpentinas, confetes e a inesquecível lança-perfume.
Quando eu nasci tinha uma guerra, mas ainda bem que nasci na Era do Rádio.