quarta-feira, 11 de maio de 2011

A FARMÁCIA DO MEU PAI


Meus queridos leitores, começo ressalvando que meu pai não era farmacêutico, mas dentista. A farmácia dele era um aglomerado de remédios que tratava de todas as doenças da família. Ele era viciado em remédios. Se
não estivesse tomando algum remédio, ele não se considerava sadio.

Meu pai tinha em casa remédio pra tudo. E quando não tinha, tratava de comprar, tão logo um sinal distante de alguma doença ameaçasse um membro da família. Esses remédios penetravam não só no meu corpo, mas também na mente. E depois de se alojar no fundo dela, nunca mais saía da memória.

Eu tinha verdadeiro pavor da tal de embrocação. Bastava minha garganta inflamar, e lá tinha eu que abrir a boca para que meu pai pincelasse a minha garganta com uma tintura vermelha horrorosa. A sensação daquelas pinceladas sobre as amídalas era horrível, dando ânsias de vômito. Se a embrocação funcionava, eu não sei. Mas, era o remédio do meu pai para garganta inflamada.

Se aparecia catarro no peito, então a solução era cataplasma. A massa quente de antiflogistina grudada no peito era outro incômodo de arrepiar. Como se fosse um pedreiro, meu pai ia esticando a massa quente sobre o meu peito, e depois o envolvia com um pano, para que a massa secasse e endurecesse. Aquele reboco ficava preso no peito por horas, até que era retirado aos pedaços. Esperava-se que com cada pedaço daquela massa dura fosse embora um pouco daquela catarreira que tomava conta do meu peito de criança.

Se tu, caro leitor, estás com vontade de me perguntar se aquilo curava, pergunta logo, pois não faço floreios para te responder. Confesso-te que não sei se curava, mas eu sobrevivi, às doenças e aos remédios. E nem sei o que era pior, talvez as doenças incomodassem menos.

Lembro-me também que, de tempos em tempos, recebíamos em nossa casa, a visita de uma enfermeira que ia vacinar a mim e a meu irmão contra a varíola. Essa era uma ação suave, que se suportava sem nada além de um resmungo ou cara feia. A moça dava uns riscos na parte superior do braço, com uma espécie de pena de caneta, e mandava não lavar por algum tempo. Às vezes, inflamava e ficava uma ferida feia. Depois que secava, ficava uma cicatriz arredondada, que muitos carregavam no braço pela vida a fora.

Antes que tu me perguntes, caro leitor, eu te respondo que não sabia se havia epidemia de varíola naquela época, mas acho que já era o início dessa obsessiva vacinação, que tomou conta da sociedade, anos depois. É verdade que nunca tive varíola, mas nem sei se o teria, caso não fosse vacinado.

Agradeço até hoje, por não haver vacinas contra sarampo, catapora e caxumba, no meu tempo de criança. Assim, pude ter essas doenças em paz, e imunizar o meu corpo para outros males piores. Hoje, em dia, com tantas vacinas, não há sistema imunológico que se mexa, diante dos vírus modernos. Muitos jovens já nem devem possuir sistema imunológico ativo, de tantas vacinas, antibióticos e comprimidos que foram obrigados a tomar quando crianças. O organismo humano é assim mesmo, se não usa, atrofia, ou simplesmente se desliga.

Quando o nariz entupia, fazia-se inalação. Água fervida num copo de alumínio, uma tampinha cheia de inhalante Yatropan, um canudo de papel e ficava eu, com o nariz enfiado no buraco do canudo, a aspirar a fumaça quente do descongestionante nasal. Eu já vou, logo, afirmando que o danado do inalante ou inhalante funcionava mesmo, e após dois ou três minutos debruçado sobre o canudo, o nariz parecia ter desentupido. Depois de algum tempo, o entupimento voltava.

Um jeito menos burocrático, meu atento leitor, era passar o dedo no pote de Vicky Vaporub, e esfregar por dentro das narinas. Menos higiênico também, mas o resultado era bastante convincente. Além daquele friozinho gostoso, quando se respirava, frio e cheiroso. E assim, a gente ia combatendo os nossos achaques, com remédios inocentes e inofensivos, ou quase.

Devo confessar-te, meu leitor, que se o quadro piorasse, e a catarreira não fosse embora, as nádegas da criança seriam atingidas por picadas de injeção. Fugia-se o quanto era possível daquela ameaçadora agulha, que vinha acompanhada de cheiro de éter, que era esfregado na pele, antes da espetadela. Uma ou duas doses da vacina anticatarral de Bruschettini e o catarro era eliminado, e por ser uma vacina, pelo menos é o que alardeava o fabricante, ficava-se muito tempo sem ter nova gripe. Confesso-te que eu não ficava contando o tempo, mas talvez não fosse tanto tempo assim. Mas, hoje, que sei das verdadeiras causas das gripes, eu não pretendo fazer acusações levianas ao fabricante da vacina.

E o que o meu pai receitava da sua farmácia doméstica para as dores de barriga? Dor de estômago, o melhor era Chophytol, mas Atroveran também era uma boa pedida. Se o intestino soltasse, tomava-se Camboacy, acondicionado numa ampola de vidro com uma tampinha de borracha. Esse mesmo Camboacy era usado por minha mãe para fazer coalhada. Na Era do Rádio, meu amigo leitor, não existia iogurte, e a coalhada pode ser considerada a prima mais próxima do moderno iogurte.

E se o intestino ficasse preso, a conhecida prisão de ventre, o que tomar? Era só ligar o rádio, e lá vinha, a resposta pelas ondas sonoras da Rádio Nacional – Leite de Magnésia de Phillips. Se doesse a barriga, saco de água quente. Se o problema intestinal se complicasse, meu pai não tinha dúvida, era preciso dar mais uma espetada no bumbum do filho. E dessa vez, o receituário paterno indicava a injeção de Necroton, cujo efeito era quase imediato.

E assim funcionava a farmácia do meu pai, sempre com um remédio caseiro para tratar dos filhos e da esposa. Meu pai acreditava no poder dos remédios para curar, e não passava sem eles.

Confesso-te, meu leitor, que o filho não segue a bula do pai, preferindo as ervas, os métodos naturais, visualizações de imagens e uma homeopatia, quando o caso assim o recomendar. A farmácia do meu pai ficava dentro do quarto, a minha fica no quintal. Os laboratórios produziam as drogas que seduziam o meu pai, a natureza produz as minhas. E com o devido respeito ao farmacêutico eficiente que ele foi e às drogas com que fui tratado na infância, eu prefiro os meus chás de carqueja, de alfavaca, de limão, o própolis, o mel, o gengibre e a água pra beber e a água quente no saco para aliviar a dor.

Era assim que as famílias se automedicavam na Era do Rádio. E, tu queres saber de uma coisa, meu ingênuo leitor? Aqueles remedinhos caseiros podiam não ser tão eficientes quanto acreditava meu pai, mas nos poupava dos modernos efeitos colaterais que matam mais do que as doenças que combatem.

A medicina, hoje em dia, condena tudo que se fazia na Era do Rádio, para tratar das doenças infantis da época, mas a verdade é que eu sou daquela geração, e eu sobrevivi. E por fim, eu te confesso, amigo leitor, tinha-se menos recursos, mas éramos mais sadios e bem mais felizes, naqueles tempos que se convencionou chamar de Era do Rádio.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

NOS TEMPOS DOS BLOCOS DE SUJOS


Meus
carnavalescos leitores, eis-nos a uma semana do carnaval!

As modinhas já eram tocadas nas rádios, desde o início do ano. Os programas de auditório reservavam um grande espaço para os cantores que gravavam para o carnaval. As fantasias da criançada já estavam quase prontas. Rolos de serpentina, sacos de confete e tubos de lança-perfume já estavam guardados à espera do sábado de carnaval. Mas, isto era num tempo distante, no tempo dos blocos de sujos, das modinhas e dos mascarados – na Era do Rádio.

Confesso-vos mais uma vez, meus assíduos leitores, que o carnaval daquela época era uma fantasia alimentada durante todo o ano e sonhada nos quatro dias de festa. A meninada da minha rua entrava em transe, desde o repicar do primeiro tamborim até o fim de noite na terça-feira. Os bondes passavam repletos de carnavalescos fantasiados cantando os sucessos que seriam repetidos nas ruas e nos salões de baile.

A minha alma não conseguia ficar sossegada no corpo, e já nas primeiras horas da manhã de sábado, eu estava na rua, cabelo desgrenhado, como todo guri com menos de 10 anos, ouvidos atentos, à espera dos blocos, a cabeça no ar e os pés descalços.

“A mulher do meu maior amigo me manda bilhete todo dia, desde que me viu ficou apaixonada, me aconselha, seu Júlio Louzada”. Essa música ficou gravada na minha memória, por razões diversas, e talvez por um pouco de um sutil erotismo, pelo menos na cabeça de um garoto da época. Estávamos no ano de 1952, época em que bilhete de mulher casada era um escândalo.

Virginia Lane, a vedete dentucinha e das pernas grossas, estava sassaricando com os velhos na porta da Colombo, e era mais uma mensagem sugestiva daquele sexo reprimido da época. A TV TUPI punha na tela as modinhas carnavalescas do ano, e isto era uma novidade para quem se acostumara a ouvir as seleções de músicas de carnaval somente através das estações de rádio.

“Espetáculos Tonelux” era um programa estrelado pela Virginia Lane que, enquanto sassaricava com a sua música, ia deixando os homens inteiramente seduzidos por suas vestes muito decotadas e de pernas de fora, consideradas audaciosas para o início da década de 50.

Carnaval era uma festa realmente popular, ansiosamente aguardada e muito festejada, porém sem os requintes de hoje em dia. Os desfiles eram de blocos e de carros alegóricos das chamadas Sociedades, o baile era o do Teatro Municipal, e o resto do tempo era diversão nas ruas e nas praças.

O sábado de carnaval era o portal mágico que dava acesso aos três dias de folia, quando o povo botava o seu bloco na rua, e saía cantando as músicas de maior apelo popular, que foram caitituadas nos programas de rádio pelos cantores famosos.

Caitituar, meu jovem leitor, era o termo usado para o ato de promover as músicas, quando os cantores faziam verdadeiras maratonas, comparecendo a inúmeros programas de auditório e aos estúdios, divulgando as suas músicas.

O rádio era o grande divulgador do carnaval, assim como é hoje a televisão. O rádio divulgava as músicas a serem cantadas nas ruas, enquanto que a televisão promove os enredos das escolas de samba, que irão ser exibidos na Avenida.

Este termo Avenida também merece uma explicação para os mais jovens. No início, as escolas de samba desfilavam nas Avenidas do Centro do Rio, a Rio Branco e a Presidente Vargas. O Sambódromo ainda era um sonho distante e essa riqueza de fantasias e alegorias, nem pensar!

Eram os blocos com suas baterias, muitas vezes improvisadas, os grandes astros da festa. A turma da rua se reunia, comprava um pandeiro e um tamborim, conseguia um tambor velho, um trombone e um clarim, e o resto era festa. As fantasias eram feitas de vestidos, saias e sapatos altos, da irmã ou da namorada, que davam um tom feminino aos machões da época.

Os mais sinistros colocavam máscaras e saíam a assustar as crianças. Caveiras, diabos e os pavorosos morcegos infernizavam as nossas vidas, e nos deixavam sobressaltados a cada esquina. Mas, havia uma ingenuidade no ar, uma brincadeira quase infantil e um erotismo disfarçado, e até escondido, que aliviava as tensões reprimidas durante o ano, e, saborosamente, descarregadas no carnaval.

Os blocos não tinham nenhuma semelhança com as escolas de samba, por não terem rainhas de baterias e nem carros alegóricos. Os seus componentes eram arregimentados na hora, nos portões de suas casas, com as roupas que tinham no corpo, ou nem tinham. As ruas eram de terra, e a poeira era inevitável. Nada mais natural, portanto, do que o termo “blocos de sujos”.

É desse carnaval que estou falando. Eu sei muito bem, meu nostálgico leitor, que acabei por te arrastar para outros tempos, os tempos dos blocos de sujos. Mas, o que posso eu fazer, se este meu recanto de memórias tem o hábito saudável de falar e relembrar daquele tempo antigo dos meus tempos de criança, que ficou conhecido como a Era do Rádio!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

MEUS CRAQUES INESQUECÍVEIS

Meus assíduos leitores, lembro-me de uma seção da revista Seleções chamada Meu tipo inesquecível, que retratava uma pessoa admirada ou admirável, dependendo da visão de quem escrevia. Inspirado nela, resolvi relembrar meus craques inesquecíveis, aqueles jogadores de futebol de todos os tempos que se tornam eternos em nossa memória.
Começarei com Barbosa, um goleiro quase perfeito, não fosse a perda da Copa de 50, quando jogaram toda a culpa da derrota nas costas dele, o que se tornou um estigma no restante da sua carreira. Mas, prefiro lembrar-me do Barbosa em fim de carreira, no gol do Bonsucesso, fazendo a torcida leopoldinense vibrar de orgulho, por ter um craque defendendo o seu gol. Ele era incrível, defendendo bolas cruzadas na área com uma só mão, dando tapinhas por cima dos atacantes e pegando a bola do outro lado. Inesquecível a figura experiente do grande Barbosa na meta do Bonsucesso.






Da mesma época, década de 50, exalto a figura de dois artilheiros extraordinários, ambos rubro-negros, Benitez e Dida. Benitez era um goleador implacável, que não deixava a bola cruzar a grande área uma fração de segundo a mais do que o necessário para ele enfiar o pé e lançá-la no fundo da rede. Dida já era mais manhoso, com seu gingado inconfundível, corpo para direita e saída pela esquerda, e na hora do chute, um toque mais colocado do que violento, e a rede balançava para delírio da torcida.










Agora é a vez de Garrincha, um driblador do outro mundo, nada de muito elaborado, simplicidade era a sua marca registrada. Ele sempre driblava para o mesmo lado, mas não havia lateral esquerdo que o marcasse. Dizia-se que ele considerava Jordan, do Flamengo, o seu melhor marcador, mas eu não via muita diferença entre uns e outros. Jordan talvez fosse o mais disciplinado, o que menos batia, por jogar somente na bola, e isto devia cativar o Mané.







Nilton Santos, o mais clássico lateral que eu já vi jogar, nada de chutão, era só bola no pé, depois de se livrar dos atacantes adversários com uma ginga de corpo. Nilton Santos foi, sem dúvida, o mais clássico jogador de defesa de todos os tempos, e é dele uma famosa frase, a respeito do carrinho, jogada que passou a fazer parte do recurso extremo de todo jogador de defesa dos tempos atuais. "Jogar de pé já não é fácil, quanto mais deitado" - afirmava o craque botafoguense que formou, ao lado de Garrincha, Didi, Paulinho, Amarildo e Zagalo, um time quase imbatível.







O próximo, caro leitor, já é mais conhecido de todos, o craque rubro-negro Zico. Esse dispensa maiores elogios, pois as imagens gravadas documentam a genialidade desse artista da bola. Com o Zico, o Flamengo teve um time quase invencível, desde que ele estivesse em campo. A presença dele era tão indispensável que, se os outros dez fossem para campo sem o Zico, o time não era o mesmo, tornando-se exposto a derrotas como qualquer um outro.


Roberto Dinamite é outro que não pode ser esquecido, um goleador como poucos existiram no futebol brasileiro. Não era um craque, não dava belos dribles, não enfeitava a jogada, mas bola nos seus pés era meio gol. Ele e Zico eram os maiores batedores de falta da época, falta para eles era penalte.




Encerro a minha nostálgica visita ao passado com o maior de todos os craques de todos os tempos, que na minha lista irá aparecer ao lado de um outro jogador, muito menos talentoso, bem menos exaltado, mas não menos eficiente e goleador. Estou referindo-me, à dupla Pelé-Coutinho, a maior dobradinha de todos os tempos, a tabelinha mais perfeita e inteligente que já se viu num campo de futebol. Do Pelé, eu nem preciso falar, pois já não existem adjetivos para coroar a sua grandeza para o futebol brasileiro e internacional, mas resolvi homenagear aquele que foi o coadjuvante perfeito para o astro Pelé, o seu mais dedicado parceiro - Coutinho.
Pretendo voltar a viajar para o passado, em próximas aventuras esportivas, aqui na Era do Rádio. Com o evento da televisão, os jogos passaram a ser transmitidos ao vivo, e muito do antigo romantismo foi sendo perdido com o tempo. Não se joga mais nos famosos alçapões, para que os times grandes não corram o risco de perder pontos que os deixem fora das decisões, já previamente programadas nas tabelas manipuladas pelas estações de TV e pelos cartolas.


O rádio consagrou jogadores e locutores. O rádio transformou estádios de futebol em autênticas lendas. Cozzi, Valdir, Curi, Doalcey formaram as vozes de domingo, que saíam do rádio para as nossas mentes, que projetavam na tela mental cada lance da narração. O rádio testemunhou grandes zebras nos estádios da Teixeira de Castro, da rua Bariri, da Figueira de Melo e de Conselheiro Galvão, e transmitiu-as para os lares dos apaixonados por futebol.


Hoje em dia, esses sonhos não existem mais, os clubes grandes têm de ganhar para atrair os patrocinadores e alçapão nem serve mais para pegar passarinho. O futebol tornou-se espetáculo, às vezes circense, com goleadores fazendo caretas para a câmera, tirando camisas num absurdo desrespeito ao uniforme do seu clube e mandando mensagens para a mamãe, para a noiva e para o filhinho que nasceu. Futebol que é bom mesmo, só de vez em quando. Craques inesquecíveis serão eternamente aqueles que fazem parte das grandes partidas que foram transmitidas Na Era do Rádio.

Aos meus leitores que ainda amam o rádio e que buscam nele as notícias de esporte recomendo que visitem o blog do Radio Carioca da Isabela Guedes: www.blogdoradiocarioca.blogspot.com
Ali irão encontrar relatos muito pitorescos sobre o esporte e os jornalistas esportivos. A Isabela sabe contar com muita graça os "causos" dos bastidores, por ser ela uma profissional da área.
O que estão esperando? Passem lá e confiram.







sábado, 1 de janeiro de 2011

MATINÊ E FITA EM SÉRIE

Meus nostálgicos leitores, matinê e fita em série eram programas habituais de toda semana na vida das crianças na Era do Rádio. Televisão não havia, ou estava só começando. Jogos eletrônicos e computador, nem uma coisa nem outra.
Durante a semana, pelada na rua; no domingo, matinê no cinema. Esses programas eram sagrados na minha época de menino. Um filme diferente pedia, às vezes, um programa diferente. E, neste caso, lá íamos nós ao cinema com minha mãe, eu e meu irmão, numa quarta ou quinta-feira, deixando o meu time de pelada desfalcado do seu goleador.
Na pelada, eu era o artilheiro, não havia goleiro que evitasse o gol, quando eu partia para o ataque. Na hora do par ou ímpar, eu era sempre o primeiro ou segundo escolhido. Por isso, quando surgia um programa diferente, durante a semana, meus companheiros de pelada sentiam a minha ausência. E, eu não nego que também sentia a falta deles.
Quem viveu na Era do Rádio sabe muito bem que ir ao cinema era um acontecimento na vida de qualquer garoto. Além do filme, havia todo o cerimonial do deslocamento, pegando bonde, chupando dropes de hortelã e se esticando na poltrona, gozando, algumas vezes, do prazer de um ar refrigerado. Era um senhor programa!
Minha mãe convocava a mim e ao meu irmão, e lá íamos nós para a sessão matinê, que queria dizer o mesmo que sessão da tarde. Cine Bonsucesso, um cineminha pequeno, sem muito conforto, mas muito simpático, foi onde assistimos O Cangaceiro.
Nesse dia, eu voltei do cinema deslumbrado e emocionado. A cena final custou a sair da minha mente, com o mocinho da história abandonando o cangaço a pé, enquanto o bando atirava em sua direção. Lampião desafiara o traidor do bando a caminhar, sem correr. Se conseguisse sair ileso aos tiros, estava livre.
A platéia em silêncio torcia para que ele pudesse se safar daquela, e, quem sabe, ficar com a professorinha que havia sido seqüestrada pelo bando do Lampião. Triste ilusão, o nosso herói ficou estirado no chão, enquanto as lágrimas rolavam pelos rostos da platéia desiludida com o desfecho trágico do filme. E, ao fundo, a nostalgia da canção Mulher Rendeira.
Confesso-vos, caros leitores, custei muito a esquecer as cenas finais do filme, afinal os garotos do meu tempo não estavam acostumados com essas desgraças de hoje em dia. “Olé, mulher rendeira, olé, mulher rendá. Tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorá”. Uma tarde inesquecível!
Cine São Pedro, na Penha, um cinema grandiosos, com colunas enormes na entrada. Lá fomos nós, assistir Luzes da Cidade com Carlitos. O filme é aquele em que ele está dormindo em cima de uma estátua que vai ser inaugurada. Quando descobrem o monumento, lá está o famoso e eterno vagabundo a ressonar sobre a estátua. A criançada ria, e adorava cada uma das palhaçadas que ele fazia, fugindo de perseguições, dando pontapés nos seus perseguidores e debochando de todos.
Esse não me marcou tanto quanto O Cangaceiro, mas cada qual na sua, um drama para fazer a platéia chorar, uma comédia, que nos fazia cansar de tanto rir. Voltávamos para casa, entusiasmados com o passeio. Descíamos do bonde Penha, que nos deixava pertinho da Estação de Trem, onde atravessávamos a linha, na altura da cancela, e íamos em direção à Praça das Nações, e dali tomávamos o rumo da Rua Bonsucesso.
Aos domingos, era dia de fita em série – novela para criança. A cada final de semana, um trechinho da história, com o mocinho envolvido em todo tipo de perigo, principalmente nos finais dos capítulos. Quando se imaginava que, ele não sairia vivo, eis que, na semana seguinte, ela espana a poeira da calça, e sai ileso sem nenhum arranhão.
A platéia, ocupada quase somente por crianças, vibrava e assobiava, comemorando as bravatas do herói. E novos perigos se sucediam, deixando o nosso herói, mais uma vez, em maus lençóis, até o capítulo seguinte. O cinema era o Paraíso, na Praça das Nações, em Bonsucesso, que ficava lotado nas matinês de domingo.
O meu gosto por cinema vem desde criança, quando era levado por minha mãe a ver filmes e fita em série, dias de semana e domingos, conforme ela programasse o seu dia. Minha mãe era muito programada, mas sabia surpreender os filhos com convites inesperados que poderiam ir desde uma sessão de cinema, até uma ida ao parque ou à noite a um espetáculo de circo.
Na Leopoldina, onde eu morava, cinema era o que não faltava, e a todos eu freqüentava com a assiduidade de um amante da magia das telas, nas quais eu me projetava e vivia com os atores dramas, tragédias, comédias e ficções científicas.
Perto da minha casa, eu podia contar com dois cinemas, o Paraíso e o Bonsucesso, e mais tarde com um terceiro o Cine Melo. Num bairro bem próximo, em Ramos, eram mais três, os cinemas disponíveis - Cine Ramos, Rosário e Mauá. O Ramos era um poeirinha, como chamávamos na época os cinemas pequenos, sem conforto e que não passava os filmes em lançamento. O Rosário era um belo e espaçoso cinema, enquanto o Cine Mauá era conhecido pelo grande conforto que oferecia, com um ar refrigerado de deixar a todos enregelados, e com um teto lindo, com nuvens e estrelinhas.
Entre Ramos e Penha, ficava o bairro de Olaria, onde existiam dois cinemas, o Cine Santa Helena, um cinema antigo que passou a se chamar Cine Olaria, e o moderno Leopoldina, que era novo e confortável, mas não possuía ar refrigerado, apenas um sistema de exaustão e ventilação. O Cine Leopoldina compensava essa deficiência com programação dupla, dois filmes por sessão, ao mesmo preço dos demais.
O mais moderno a ser construído na região foi o Cine Higienópolis, de tamanho médio e muito aconchegante, com uma refrigeração perfeita e cadeiras confortáveis. O cinema era arredondado e a tela acompanhava o formato circular das paredes, oferecendo uma visão panorâmica, em qualquer lugar que se sentasse. Era uma referência para a criançada dos bairros vizinhos, pois aos domingos tinha uma tradicional sessão infantil com desenhos animados de Tom e Jerry.
O último construído naquela área mais próxima a minha casa foi o Rio Palace, um cinema com um relativo luxo e com um amplo salão de projeção. Ele ficava numa galeria e passou a fazer parte das minhas tardes de cinema somente quando eu já era adolescente.
O meu amor por cinema começou na infância e se estende até hoje. Cinema, música e literatura são três paixões que trago desde a juventude, e que me transportam para um tempo em que filme se via no cinema, livro era impresso em papel e música era ouvida num aparelho de rádio.
Essa afirmação surpreende a geração moderna que assiste os filmes na TV, lê livros na tela do computador e ouve músicas num aparelhinho minúsculo que programa centenas de músicas que são ouvidas através de um egoísta par de mini-fones.
A tecnologia é uma conquista admirável, mas tudo isso tirou grande parte do encanto que a vida nos proporcionava, no meu tempo de infância. Isto porque eu tive o privilégio de ter vivido numa época de muito sonho e romantismo, a chamada Era do Rádio.