Esses dias que antecedem mais uma Copa do Mundo me transportam para os meus tempos de criança, lá para os idos da década de 50.
É verdade que nem sempre as lembranças são prazerosas, mas o que se pode fazer com a memória, se ela teima a nos arrastar pelo tempo, para décadas passadas.
A minha primeira lembrança de Copa do Mundo é a de 1950, quando o Brasil inteiro chorou a derrota na decisão para o Uruguai por 2x1, com o Maracanã lotado.
Como nasci em 44, e em 46 não houve Copa, por causa da guerra, a Copa do Mundo no Brasil teve um sabor todo especial, por ter sido a primeira disputada após a minha chegada a este mundo.
Com meus míseros seis anos de idade, passei a conviver com jogadores de nomes difíceis de pronunciar para quem mal aprendera a falar o português.
O meu tio Adhemar, pouco mais velho do que eu, foi o grande mestre das minhas brincadeiras infantis, dentre as quais, o jogo de botões. Eu já contei isso, mas não me furto de repetir quantas vezes forem necessárias, pois com a inexperiência da idade seria impossível organizar a Copa do Mundo de futebol de botões, sem a assessoria direta do meu tio.
Adhemar chegava com botões novos que iriam compor as diversas seleções, já que os botões que eu tinha não seriam suficientes. Ele trazia também no bolso da camisa as escalações de todas as seleções, para que recortássemos os nomes de cada jogador e colássemos nos botões.
Era na hora de pronunciar os nomes dos jogadores que as coisas se complicavam um pouco, mas nem tanto, pois meu tio havia ouvido no rádio o modo certo de falar aqueles nomes estrangeiros, e me ensinava a repeti-los até a exaustão.
Nomes espanhóis como o do goleiro Ramallets, dos atacantes Basora, Panizo, Gainza e Parra se tornaram íntimos do meu vocabulário, e passaram a ser citados aos brados, enquanto eu irradiava o jogo, em que um dos meus times de botões, representando a Seleção da Espanha, enfrentava a Seleção da Itália, defendida pelo meu tio.
Esses nomes apareciam em cima dos botões, para ajudar-me a identificá-los, mas eu ainda não sabia ler, e teria mesmo é que decorar os nomes de cada botão. Os nomes italianos para o meu tio eram mais fáceis de identificar, pois ele ia lendo os nomes colados nos botões.
Boniperti, Pandolfini, Campatelli e Capello eram alguns dos nomes esquisitos para os meus ouvidos infantis que ainda estavam praticando sua audição com palavras da língua portuguesa.
A Espanha enfrentou a Itália na nossa Copa do Mundo de botões, mas o Uruguai e o Brasil, que iriam protagonizar a grande decisão, não poderiam ficar de fora, e também se enfrentariam no chão de tacos bem encerado do meu quarto.
Barbosa, Augusto e Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico, esta era a minha escalação favorita, que eu considerava nos meus ingênuos seis anos uma seleção imbatível.
A seleção do Dunga, meus jovens leitores, se comparada com a seleção de 50, não passa de um time de peladeiros da várzea, daqueles que chamam a bola de madama, sem a menor intimidade com a esfera, como diziam os locutores do meu tempo de criança.
A seleção brasileira era muito superior à dos nossos “hermanos” uruguaios, mas o futebol é uma caixinha de surpresas, mais uma frase de efeito dos locutores esportivos da Era do Rádio.
No clássico dos botões, o Brasil derrotou com facilidade a seleção uruguaia, e tudo fazia crer que o mesmo aconteceria naquele domingo no Maracanã. Mas, Obdulio Varela, o xerife uruguaio, tomou conta do jogo, gritou com os brasileiros, pressionou o juiz, deu uns trancos nos seus companheiros de equipe e levou o Uruguai à conquista da Copa.
Brasil 1x0, o Maracanã delira, gol de Friaça, a Copa do Mundo é nossa. O segundo tempo corre e, de repente, Schiaffino recebe um passe de Gighia e empata o jogo, calando o Maracanã. Daí a pouco, a tragédia em seu ato final, Gighia dribla Bigode e chuta no canto da baliza de Barbosa, decretando o luto por oito anos do futebol brasileiro.
A nação brasileira precisou aguardar a seleção de 58, para recuperar a auto-estima e levantar a Taça, pelas mãos de Beline, o grande capitão da seleção que teve até uma música originalíssima, que dava a escalação da seleção com ritmo – Gilmar, De Sordi e Beline, Zito, Orlando e Nilton Santos, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo, eis o escrete nacional.
Desculpem-me, meus esportivos leitores, mas não dá para comparar a seleção daquele título de 58 e a outra inesquecível de 70, com essa atual, de Elano, Júlio Batista, Gilberto Silva, Josué e outros menos medíocres, mas nem por isso à altura de uma seleção brasileira.
Creiam-me que nem desacredito que essa seleção desprovida do viço e da beleza do futebol brasileiro possa tornar-se campeã, pois, apesar de todo o esforço da mídia para nos convencer do contrário, joga-se no mundo inteiro um futebol de trancos e barrancos, mais de cartões e expulsões do que de gol, mais voltado para os euros do que para os dribles, mais preocupado em promover cartolas do que craques.
No tempo da Era do Rádio, ouvia-se a voz encorpada de tom solene de um Oduvaldo Cozzi abrir a transmissão de um clássico esportivo como se fôssemos assistir a uma sinfonia no Teatro Municipal. Os comentaristas entendiam de futebol, e não estavam preocupados em elogiar o atleta que será negociado para a Europa, nem falsear com a verdade atribuindo ao jogo virtudes que só servem para promover os direitos de transmissão de sua rede global.
A realidade é que não consigo esquecer os dias que antecediam às Copas, como também acontecia nas vésperas dos dias de Carnaval. Era aquela ansiedade, escalando o nosso time ideal, ou cantando a nossa marchinha favorita.
Futebol e carnaval estavam sempre presentes nos meus sonhos de menino. Era só ligar o rádio na hora certa que sentíamos todo o arrepio do início de um jogo ou de um grito de gol.
As marchinhas mexiam com o nosso imaginário, e eram até levadas para os estádios, como Touradas de Madri, na Copa de 50.
O clima é outro, meu amável leitor, os tempos mudaram, e já não se joga mais por amor à camisa, mas pensando no contrato que poderá vir no final da Copa. E as marchinhas, bem, essas nem existem mais. Tudo ficou para trás, preso no tempo da Era do Rádio.