sábado, 20 de novembro de 2010

ERA UMA VEZ UM FLAMENGO

Meus nostálgicos leitores, aproveitando a sugestão de um novo amigo, o Franklin, lá da Bahia, regressei no tempo para falar dos locutores esportivos da Era do Rádio.
É verdade que não só de locutores irei tratar nesta minha incursão pelos tempos idos, pois decidi pegar uma carona no papelão que o Flamengo tem feito, para lembrar uma fase áurea do rubro-negro.
Viajo no tempo, e desembarco no dia 16 de novembro de 1955, quando sozinho no quarto da bagunça, na minha casa em Bonsucesso, eu ouvia uma partida do campeonato carioca de basquete. Jogavam Flamengo e Sírio Libanês, e o jogo se aproximava do final com o Sírio vencendo por uma diferença de um ponto. O jogo seria decisivo para a conquista de mais um título pelo Flamengo.
Na época, o Flamengo era absoluto no basquete masculino, apesar de existirem outras grandes equipes no Rio de Janeiro, como Fluminense, Vasco e Grajaú, entre tantas outras mais.
O time de basquete rubro-negro era formado de jogadores de alto nível, como o inesquecível Algodão, e os craques Alfredo, Godinho, Gedeão, Mario Hermes, Guguta e uma extensa relação de nomes.
O presidente do clube, Gilberto Cardoso, o maior administrador que o Flamengo já teve, assistia o desenrolar da partida, angustiado com a possibilidade da perda do jogo e do título.
O cronômetro se aproximava do fim do tempo regulamentar, como os locutores da época costumavam dizer, faltavam 10 segundos, 9, 8, 7, 6, e a bola chega às mãos de Guguta, na cabeça do garrafão. Guguta alça os braços e lança a bola em direção à cesta. Os 5 segundos faltantes viraram 4, 3, 2, 1 e cesta do Flamengo. O Flamengo vence o jogo por uma diferença de um ponto, e vem a se sagrar campeão.
O presidente Gilberto Cardoso não se sentiu bem, pouco antes do final da partida, pegou o carro e, quando percebeu que não dava para continuar dirigindo, pegou um taxi. Antes de chegar ao hospital, o coração não mais resistiu, e talvez sem saber que o seu Flamengo havia vencido, ele deixou o cargo e esta vida para sempre.
Os jogadores de futebol, que já eram bicampeões, com os títulos conquistados em 53 e 54, assumiram um compromisso de homenagear o seu presidente com o tricampeonato. Naquele tempo, meus desinformados leitores, o presidente era um torcedor das cores do seu clube, e lutava pelas conquistas de títulos em todos os esportes.
Gilberto Cardoso assumiu o clube em 1951 e fez do Flamengo o mais respeitado de todos os clubes cariocas, em todas as modalidades. Ele contratou os dois maiores treinadores da história do Flamengo, um para o futebol, o paraguaio Fleitas Solich, e outro para o basquete, Togo Renan Soares, o Kanela.
Os campeonatos se sucediam e os títulos iam sendo conquistados. No atletismo, no remo e no voleibol, o Flamengo também estava entre os melhores.
O campeonato de futebol de 1955 chegou ao final com Flamengo e América empatados na liderança. A decisão seria conhecida depois de uma melhor de três, que começou com uma vitória do Flamengo por 1x0. O time do América entrou mordido no segundo jogo e goleou por 5x1, levando a decisão para um terceiro jogo, que foi realizado no dia 4 de abril de 1956.
Meus jovens rubro-negros, os tempos eram outros, o treinador do Flamengo, o paraguaio Fleitas Solich, era um maestro, ou feiticeiro como a imprensa o tratava, e ele preparou o feitiço dele, tão logo percebeu que precisava melhorar a altura da sua defesa e a movimentação do seu ataque, para evitar uma nova derrota.
Solich não pensou duas vezes, lançou Servilho na defesa e Dida no ataque. Os dois times eram verdadeiras seleções, quando comparados com os timecos que representam clubes afamados no dias de hoje. Chamorro, Tomires e Pavão; Servilho, Dequinha e Jordan; Joel, Duca, Evaristo, Dida e Zagalo eram os craques do Flamengo. Enquanto o time do América, com um plantel de primeira grandeza tinha no gol o goleiro Pompéia, que era o rei das pontes voadoras, na zaga Rubens e Edson; na linha média Ivan, Osvaldinho e Hélio e no ataque Canário, Romeiro, Leônidas, Alarcon e Ferreira.
Era um clássico para ninguém botar defeito. E no apito, nada mais nada menos do que Mário Vianna, com dois enes, como ele fazia questão de enfatizar.
Ah, agora outro craque, não da bola, mas do microfone – Oduvaldo Cozzi. A rádio era a Continental, uma emissora inteiramente dedicada ao esporte, e líder em audiência, quando se tratava de uma transmissão esportiva.
Oduvaldo Cozzi era uma figura acadêmica, no meio da classe jornalística envolvida com o esporte. Ele parecia mais um personagem clássico de um drama shakespeariano, do que um locutor esportivo. As palavras saíam dos seus lábios, emolduradas em rara beleza e que se tinham algo a ver com o que se passava em campo, ficava por conta da sua habilidade de interpretar as palavras com a sutil malícia de quem sabe o que está fazendo.
A transmissão era aberta com alusões à beleza do céu, à brisa que acariciava a relva verde do gramado e balançava com suaves carícias as redes que aguardavam as bolas que seriam comemoradas aos gritos de GOL.
Cozzi era uma enciclopédia literária, e não abria mão de fazer chegar aos seus ouvintes toda a magia e encantamento das imagens criadas a partir do que ele via no campo de jogo. Os seus repórteres tinham de manter aquele quadro vivo de rara beleza, sem maculá-lo com palavras ou interrupções inconvenientes.
Quem trabalhava com o Cozzi, naquela época, como seu assistente, era o depois afamado locutor esportivo Waldir Amaral. É daquele tempo o famoso jargão – “Fala Waldir...”.
Calma, meu impaciente leitor, que logo retornarei à decisão do campeonato carioca de 55.
O jogo foi noturno, no meio de semana, e o palco não poderia ter sido outro senão o nosso querido e tradicional Maracanã.
A bola rolou pela cancha gramada, e num rodopio Dequinha tocou para Joel que partiu para o ataque. O Flamengo não estava disposto a perder tempo. E dentro desse espírito combativo e apressado, Tomires, um zagueiro que não perdia a viagem, entrou forte no Alarcon, e deixou o time do América com menos um em campo.
Lembrem-se, meus leitores, que naquele tempo não havia a regra três, que passou a permitir a substituição de jogadores machucados, cansados ou que não estejam dando conta do recado. Se um atleta se machucasse, o seu time ficaria com menos um, e se esse contundido fosse o goleiro, um jogador de linha vestia a camisa de goleiro e ia para baixo dos paus.
Com menos um, o América não suportou a fúria do rolo compressor da Gávea, comandado pelo jovem alagoano Dida, numa noite de rara inspiração, marcando os quatro gols rubro-negros.
Cozzi exaltava a magia que saía dos pés de Dida, como se ele fosse o verdadeiro feitiço das obras mágicas do feiticeiro Solich. Naquela noite, ninguém conseguia marcar o Dida, e os gols foram sucedendo-se na narração compassada e puxada nos erres do Cozzi.
Joel domina a bola e chuta em gol, a bola bate na trave e volta para Duca que emenda e a bola, tocando no Dida, e enganando o goleiro Pompéia, vai beijar mansamente o fundo da rede – Flamengo 1x0.
Dequinha, no seu estilo clássico, toca a bola em direção a Dida que de cabeça aninha a bola no fundo da rede – Flamengo 2x0.
O time do América marcou o seu gol e começou a ameaçar, mas, de repente, numa virada certeira com a perna esquerda, Dida marca o seu terceiro gol – Flamengo 3x1.
E antes que o jogo chegasse ao fim, o zagueiro Pavão manda uma bomba para frente que encobriu o goleiro Pompéia e se chocou com a trave. Evaristo pega o rebote, e se prepara para marcar, quando surge o Dida, e roubando a bola do companheiro toca no canto e dá os números finais à partida – Flamengo tricampeão 4x1 América.


A grandeza das transmissões esportivas estava no fato de que os ouvintes viam o jogo através dos olhos e das palavras dos locutores. E nesse particular, Oduvaldo Cozzi foi um precursor da transmissão clássica, do uso perfeito do vernáculo e das imagens líricas que enfeitavam todo o seu discurso narrativo, mas em especial a abertura das jornadas esportivas.


Cozzi teve no discípulo Waldir Amaral o seu fiel seguidor, que tanto quanto o mestre exerceu a liderança, por algumas décadas, do cenário radio - esportivo carioca. Jorge Cury chegou a ameaçar essa liderança, mas o sábio Waldir tratou de dividir com ele o espaço da Rádio Globo, antes que a concorrência pusesse em risco a sua posição de liderança. Cada um irradiava meio-tempo do jogo, e não se falava mais nisso.
Aquele era um tempo de magia e de feitiçaria. A magia ficava por conta dos gênios da locução esportiva e a feitiçaria era obra do feiticeiro Fleitas Solich, o maior estrategista que o futebol carioca já conheceu.
Era também um tempo de diretores sérios e dedicados à administração dos clubes do seu coração, como Gilberto Cardoso. E, por fim, eu diria aos mais jovens torcedores rubro-negros que, jogadores como Dequinha, Jordan, Joel, Rubens, Índio, Benitez, Evaristo e o goleador Dida, não serão jamais esquecidos por quem acompanhava e torcia por seu time, junto a um aparelho radiofônico, naquela que foi conhecida como a Era do Rádio.