sábado, 28 de junho de 2008

A simplicidade na arte de ser feliz


"Tá com medo tabaréu, é de linha de carretel".

Com esse desafio, a molecada na rua provocava o dono da pipa que fugia do embate, com medo de cruzar.

Quem se preocupava por saber o que era tabaréu ? Aquele era um grito de guerra repetido por todos, como um guerreiro fazendo pouco de um inimigo confuso, sem traquejo e despreparado para a batalha.

A linha de carretel era uma alusão ao cordonê, um barbante resistente que muitos utilizavam para cortar e aparar as pipas alheias, e que era imbatível na hora de embolar.
A linha de carretel era a tradicional linha 10, que quase todos usavam, muitas vezes envolvida em cerol ou cortante, para se tornar afiada e cortar a linha dos que cruzavam em seus caminhos.
Entre o inverno e a primavera, quando o vento se fazia mais presente nos céus do Rio de Janeiro, as pipas vagavam por entre nuvens, tenteando, dando de bico e voando. Como uma cobrinha elas tenteavam para a direita e para a esquerda. Como um raio, elas mergulhavam em direção ao chão, dando de bico, e voltavam a alçar vôo em direção às nuvens, como um avião de caça, durante as batalhas aéreas.
Assim, passávamos as tardes, manuseando pipas e carretéis de linha, que tinham técnicas apuradas de serem enrolados, num traçado em torno de um eixo de bambu que era enfiado de um lado ao outro do carretel.
Quanta ingenuidade naquelas violentas batalhas travadas nos céus do nosso bairro !
Quanto orgulho em cortar e aparar a pipa do inimigo !
Era indescritível a sensação de delírio, quando após uma série interminável de manobras, a nossa linha cortava a linha do outro, fazendo com que sua pipa fosse embora levada pelo vento, enquanto no seu rastro se lançava uma turba de meninos a fim de capturar a pipa que voou.
No fim de tarde, já de banho tomado, ficava-se no portão à espera da janta.
O som do parque de diversões que ficava montado lá na esquina trazia aos nossos ouvidos a melancolia de um chorinho ou o ritmo carnavalesco de uma marchinha. Na Era do Rádio, não se poderia imaginar uma lembrança a ser guardada sem um registro musical, sem um som mágico que num futuro distante nos conduziria de volta àqueles tempos de menino.
A roda gigante toda iluminada convidava-nos a espiar lá do alto, as ruas do bairro com suas casas simples de luz mortiça. Como pano de fundo, o morro enfeitado de luzinhas suaves, vindas dos postes e das janelas das casas humildes, mas que em nada se assemelhavam aos barracos de hoje em dia. O bonde iluminado circulava em direção a Ramos ou a caminho de Higienópolis. E, de repente, um trem bonito, com máquina
soltando fumaça puxando vagões de madeira, levava os trabalhadores de volta para casa.
Aos sábados, podíamos ter a alegria de saber que haveria um show de marionetes no parque, e lá íamos eu e o meu irmão assistir os bonecos representando o Lobo Mau e o Chapeuzinho Vermelho ou o Blecaute cantando "Hoje é Dia dos Namorados".
Às 6 horas, todos ligavam seus rádios para ouvir com respeito, na voz de Júlio Louzada, a oração da Ave Maria, o que era mais uma tradição do que um ato de fé.
Meu pai costumava chegar do trabalho, em torno desse horário, trazendo debaixo do braço o jornal O Globo, que era disputado por mim e por meu irmão, ansiosos por ler as nossas histórias em quadrinhos, publicadas em tiras e acompanhadas com o mesmo fervor com que os adultos se ligavam na novela O Direito de Nascer, uma unanimidade nacional daquela época.
Na minha casa, o jantar era servido rigorosamente às 7, quando todos se sentavam à mesa, orquestrados por minha mãe que nos servia, como era costume na época, em regime de prato feito.
Novela das 8, um programa humorístico da Nacional ou da Mayrink Veiga e um jogo de futebol noturno, quando jogasse o Flamengo, e lá íamos todos para a cama. Assim terminava mais um dia de rotina, um dia simples, que precisava de muito pouco para me fazer feliz.








4 comentários:

Flora Maria disse...

Apesar da minha rotina ter sido diferente da sua, "viajei" lendo suas recordações.Saudades ? Não.
Acho que é mesmo nostalgia, que nem sei bem o que é...
Beijo

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida Flora...
Relendo o seu comentário, resolvi deixar uma resposta, mesmo já havendo passado tanto tempo.
Nós sempre "viajamos" juntos, mesmo quando ainda estávamos separados. Saudades ? Nostalgia ? Quem sabe ! Ou talvez um sentimento de que mesmo distantes um do outro, sempre vivemos juntos cada emoção!
Minhas recordações acabam se tornando também suas recordações, e as nossas recordações acabam se confundindo, e se fundindo numa só. Mas, como diz você talvez a gente nem saiba bem o que é...
Beijos.
Gilberto.

Flora Maria disse...

Meu querido Gilberto:
Escolhi essa postagem para fazer parte da comemoração dos 4 anos do Flora da Serra.
Veja aqui:
http://floradaserra.blogspot.com/2011/09/4-ano-de-flora-da-serra-vamos-festejar.html

Beijo

Gilberto Gonçalves disse...

Minha querida Flora:
Sinto-me honrado com a escolha, e desejo sucesso cada vez maior para o seu blog.
Parabéns!
Beijos.
Gilberto.