O mês de fevereiro mal começava e eu já contava os dias que me separavam do carnaval.
O fato de haver nascido no mês de fevereiro, num domingo após o carnaval, havia de mexer com esses meus sentimentos profanos de celebrar as festas pagãs com tamanho entusiasmo.
Desde os meus 3 anos, eu já me fantasiava e guardava na memória as letras das marchinhas carnavalescas. Se as cantava, aí eu já não sei, mas que me lembro delas até hoje, e se as cantarolo me transporto para aqueles tempos, disto não tenho dúvidas.
A minha primeira fantasia foi de Índio, no carnaval de 47, e a segunda, de Aladim, em 48. Em 49, eu não tive carnaval, já que sem fantasia não havia o que celebrar. Meu avô materno faleceu no sábado de carnaval, quando minha mãe dava os últimos retoques na minha fantasia de mocinho, como era chamado o herói dos filmes de bang-bang.
Ainda guardo na memória, minha mãe na sala, às voltas com linha e tesoura, quando meu tio chegou, e avisou que meu avô pedira que fosse até a casa da irmã, e lá ficasse. Logo a seguir, minha mãe foi avisada para ir à casa do pai, e lá chegando já o encontrou sem vida, após um ataque fulminante do coração.
A fantasia foi para o fundo do baú, e o meu carnaval acabou naquele sábado, sem confete, serpentina ou lança-perfume. Nos dias seguintes, os blocos desconheciam o nosso luto, e passavam cantando o General da Banda, a Chiquita Bacana e o Pedreiro Valdemar. No rádio, as vozes de Blecaute e Emilinha espalhavam-se pela vizinhança, misturando-se ao inebriante perfume das lanças-perfumes. Mas, naquele ano de 1949, eu não ganhei o direito de portar o meu artefato de metal dourado, tão sonhado e cobiçado, que lançava jatos de perfume que arrepiavam a pele e perfumavam o ar. A minha fantasia ficou guardada como uma sinfonia inacabada, triste e desolada, sem ter a quem vestir.
Dentro de mim, eu me consolava com a lembrança do Cadê Zazá, sucesso do carnaval do ano anterior, na voz do Carlos Galhardo. Na memória, a fantasia de Aladim, que já nem dava mais em mim. O mocinho ficaria para o ano seguinte, a Chiquita Bacana, lá da Martinica, que se vestia com uma casca de banana nanica, não foi cantada, mas fez contraponto com a marcha fúnebre que permaneceu no ar daquele triste lar.
Ah, mas no carnaval de 1950, o herói brilhou nas telas do bairro, seduzindo as mocinhas e pondo os bandidos para correr! Nunca eu me guardei tanto, esperando o carnaval chegar, como naquele ano de 1949. E quando ele chegou, lá estava eu, de camisa quadriculada, lenço no pescoço, chapéu na cabeça e um par de revólveres na cartucheira.
Nos rádios da vizinhança, Jorge Goulart soltava a voz, exaltando as balzaqueanas, que muito antes, o escritor francês Honoré de Balzac já havia escolhido como suas favoritas. É verdade que a garotada não levava muita fé naquela afirmativa, "não quero broto, não quero, não quero, não, não sou garoto para viver mais de ilusão, sete dias na semana, eu preciso ver minha balzaqueana". Era mais fácil acreditar naquele apaixonado pierrô, que na voz de Nelson Gonçalves, jurava ter guardado "a serpentina que ela jogou, ela era uma linda colombina, e eu um pobre pierrô". Era o carnaval de 1950, era tempo de voltar à folia de menino, de ouvido atento nas marchinhas do rádio e de olho esperto nas esquinas, à espera do bloco passar.
Era esse o meu carnaval. Nada de pular, nada de sair atrás de blocos, e muito menos de botar máscaras no rosto, eu só queria viver o clima do carnaval. Acordar no sábado, correr para a rua, e respirar o ar festivo que iria durar por 4 dias. À tarde, o ar já recendia a lança-perfume, e à noite, nas barraquinhas da Praça das Nações, era o molho do cachorro-quente que penetrava por minhas narinas, e temperava a minha alma de folião.
Se o meu olfato gravou na memória a preparação dos cachorros-quentes, os meus olhos permanecem seduzidos até hoje pelas imagens daqueles potes de vidro, cheios de refrescos vermelhos e brancos, de onde eram servidos, em copos cônicos de papel, a groselha e a limonada. Que saudosas lembranças, quanto encantamento!
Ah, se, naquele início de ano, eu soubesse o que aquele fatídico ano de 1950 reservava para o futebol brasileiro, talvez não me deixasse contagiar por tamanha euforia, com o meu retorno ao clima carnavalesco ! Mas, a vida é feita de bons e maus momentos, num contracanto de graves e agudos, de altos e baixos.
Alegrias e tristezas, mortes e renascimentos, vitórias e derrotas. Morreu meu avô, em fevereiro de 1949, nasceu minha prima, filha do meu tio Sandoval, no dia 1º de março. Não joguei lança-perfume na Chiquita Bacana, mas, no ano seguinte, cantei a Balzaqueana. Perdemos a Copa em 50, mas fomos tri-campeões, 20 anos depois.
E tudo ao som do rádio. Marchinhas no carnaval, Oduvaldo Cozzi narrando os jogos, César de Alencar alegrando os nossos sábados e O Balança mas não cai fazendo a alegria das nossas noites de sexta-feira.
E, quando acabava o nosso carnaval, e não mais se ouvia cantar canções, como lamentava os versos de Vinicius, já ficávamos ansiosos guardando-nos para o ano seguinte, quando o carnaval chegar. Entre esses versos do Vinicius e os do Chico, ficava aquela criança sonhadora, ligada nas marchinhas de sucesso e no som que vem do rádio. Afinal, é bom que não se esqueça que o menino, que era eu, viveu a sua infância na plenitude de um tempo que foi conhecido como a Era do Rádio.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
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6 comentários:
Querido companheiro de recordações:
É muito bom poder relembrar junto com você esses carnavais da nossa infância, sentindo novamente o delicioso cheiro de lança-perfume - sonho de consumo de todos nós.
Num mundo tão simples e puro, quanta alegria sentíamos somente vendo o Carnaval, com seus blocos que atravessavam a Praça das Nações e admirando os foliões fantasiados que passeavam pelas ruas de um bairro suburbano.
Coisas da Era do Rádio...
Beijo
Minha querida, Flora, eterna porta-bandeira dos desfiles de minhas recordações dos velhos carnavais!
Ainda hoje, me vejo passando em frente à loja do seu pai, e ali parar para assistir à montagem das barraquinhas de cachorro-quente, onde eram vendidos os refrescos de limão e groselha, naqueles inesquecíveis e sedutores potes de vidro.
Às vezes, tenho a sensação que ali estamos juntos, separados por uma tênue linha do tempo, aspirando o perfume da lança-perfume misturado ao cheiro das lingüiças e do molho do cachorro-quente, que saía das grandes formas retangulares que eram levadas ao fogo.
Por um lapso de tempo, me vejo espargindo aquele delicioso perfume em seu pescoço, e provocando-lhe um leve tremor e um sorriso tímido, antes que sua imagem de menina desapareça da minha memória.
Bons tempos aqueles ! Belos sentimentos, os nossos !
Beijos, querida Flora.
Gilberto.
NOSSA !!!
Diante de tanta poesia tenho que fazer a tréplica !
Quantas vezes já pensei que devemos ter estado juntos, em vários momentos, naqueles tempos idos...
Será que foi você o garoto gentil que veio me pedir desculpas quando fui atingida pela bola que jogavam na rua ? Eu teria uns 9 anos e você 10...
Vamos fazer de conta que sim, e continuar sonhando com a Era do Rádio.
Beijo
Flora Maria
Minha querida, Flora !
Pensando bem, eu não era o menino que pediu desculpas, pois ele não sentiu o melhor. Eu era a bola que tocou a sua pele, e foi o maior gol que de que ela participou.
Beijos, minha colombina.
Gilberto.
Um dos grandes astros do samba de breque (ao lado de Moreira da Silva), do samba de gafieira e da música de carnaval, Jorge Veiga era conhecido pelo balanço malandro da voz nos sambas anedóticos que respondiam por boa parte do seu repertório (tendo recebido de Paulo Gracindo a alcunha de “Caricaturista do Samba”). Carioca do Engenho de Dentro, ele viveu de biscates até que um de seus contratadores o levasse em 1934 à Rádio Metrópolis. Inicialmente trafegando pelo estilo mais empostado, Jorge aos poucos foi desenvolvendo a leveza e o bom humor em suas interpretações. O primeiro sucesso veio no carnaval de 1944, “Iracema”, de Raul Marques e Otolino Lopes. Outros seguiriam em fila, ao longo dos anos 40, 50 e 60: “Rosalina”, “Cabo Laurindo” (ambas de Haroldo Lobo e Wilson Batista), “Eu Quero É Rosetá” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), “Estatutos da Gafieira” (Billy Blanco), “Café Soçaite” (Miguel Augusto) e “Bigorrilho” (Paquito, Sebastião Gomes e Romeu Gentil). Em 1971, lançou o LP “De Leve”, com Cyro Monteiro. Quatro anos depois, viria “O Melhor de Jorge Veiga”.
Abraços - Marco Vianna
Meu amigo, Marco :
Com que imenso prazer recebo o seu comentário !
E mais do que um comentário, vejo-o como um subsídio adicional ao texto, fornecendo novas informações sobre cantores que fizeram os nossos carnavais, Na Era do Rádio.
Jorge Veiga era um dos que eu muito admirava, pois ele aparecia muito nos programas de auditório da Rádio Nacional, que minha mãe gostava de ouvir.
Lembro-me da saudação que sempre fazia, antes de se apresentar, por conta de ter sido agraciado com um título pela Aeronáutica.
Acho que era mais ou menos assim :
Senhores aviadores, que cruzam os céus do Brasil, aqui fala Jorge Veiga da Rádio Nacional. Queiram anotar seu prefixo, para guia das nossas aeronaves.
Se não era isso, era quase isso.
Agradeço muito a sua visita, e os seus sempre lúcidos comentários.
Um abraço.
Glberto.
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