Há 103 anos atrás, no dia 4 de maio de 1906, nascia em Salvador, na Bahia, o grande músico e uma das criaturas mais inventivas e pioneiras que conheci, o saxofonista e meu tio, Sandoval Dias.
Tendo casado com minha tia Amélia, em 6 de março de 1948, quando eu só tinha 4 anos de idade, tio Sandoval marcou a minha infância com seus hábitos pioneiros, para o menino criado na vida simples de uma família de classe média da época.
A sua condição de artista da Rádio Nacional, na Era do Rádio, já o tornava um ídolo de minha meninice, alguém que trouxe a fama do estrelato para dentro da família. Se não era bem assim, não era outra a visão que eu tinha do meu tio músico.
O seu saxofone dourado parecia, aos meus olhos de criança, uma peça de um inestimável valor, que avalizava e engrandecia a sua condição artística e musical. E se, de repente, numa reunião em família, meu tio punha-se a tocar, aí mesmo é que os meus sonhos de grandeza não tinham mais fim.
Tio Sandoval introduziu hábitos e valores, na vida da família, que eram absolutamente revolucionários para aqueles idos tempos do final da década de 40 e início dos anos 50.
Máquina de filmar e projetor reproduziam na tela os encontros em família, os batizados dos filhos, os nossos aniversários ou simples reuniões de domingo, em torno da mesa farta com a casa cheia.
Lembro-me de uma noite em que a vizinhança pôde assistir a uma sessão de cinema, num telão que meu tio estendeu do outro lado rua, onde projetou desenhos animados do Popeye e Olívia Palito e comédias do Gordo e o Magro e do Carlitos. Isso, numa época em que não havia televisão e que os cinemas ainda não haviam começado a se espalhar pelos bairros, como veio a acontecer nas décadas de 60 e 70.
A criançada ficava deslumbrada, diante daquele projetor com seus carretéis mágicos, girando e projetando imagens, que eram lançadas através de um foco de luz numa tela branca. A emoção de poder escolher o filme que queríamos assistir, e ver os personagens que só conhecíamos das tiras de jornal ou das poucas revistinhas infantis da época, era algo indescritível e inteiramente despropositado para os tempos modernos.
E o que dizer do fato de poder assistir a própria imagem na tela, brincando com os primos ou correndo atrás do Cipó, o cão do meu tio, que ganhou o nome em homenagem ao amigo e músico!
A casa de Paquetá, para finais de semana, foi outra iniciativa revolucionária do meu tio Sandoval, para aquela época, e principalmente para aquela família com uma vida rotineira e previsível.
As casas de Paquetá, lembro-me de duas delas, e nem sei se houve outras, marcaram a minha infância, deixando lembranças que ainda hoje me fazem suspirar de saudade. As sextas-feiras à noite, ansiosas e quase angustiantes, pareciam não ter fim, encumpridando as madrugadas e criando uma expectativa deliciosa para a chegada das manhãs de sábado. O cheiro de maresia da Praça XV, o ronco do motor das lanchas ou o suave contato das pás das barcas com as águas da baía, deixavam o meu coração aos saltos, enquanto eu sorvia o frescor da manhã, a caminho de Paquetá.
As férias em Lambari foram mais uma criação do meu tio Sandoval, que conseguiu convencer os meus pais a passarem uma semana num hotelzinho familiar e aconchegante, naquela aprazível estância hidromineral do sul de Minas. A experiência foi maravilhosa, e me deixou em estado de graça, por viajar de trem maria-fumaça, chegando à noite no hotel, e sendo acolhido com muito carinho pelos proprietários, que logo pude perceber, tinham o meu tio em alta conta.
Aprendi a admirar o tio Sandoval por esses pequenos detalhes familiares, que ele, como poucos, sabia valorizar e usufruir com alegria e descontração. A sensação é que tudo era muito fácil para ser conseguido, ele parecia ter um jeitinho todo especial para descomplicar tudo e extrair prazer das coisas mais simples.
Essa recordações, e o sentimento de que o tio Sandoval foi tão importante para a minha vida, quanto o músico Sandoval, para a musicalidade brasileira, fizeram-me escrever este texto, em que presto-lhe uma homenagem pelos 103 anos do seu nascimento.
E ao som dos Boêmios, conjunto em que tocou, durante a década de 60, vou encerrando esse rosário de belas recordações da minha infância, quando tudo começava e acabava com música.
Afinal de contas, vivi e convivi com as rotinas musicais da Era do Rádio, e ainda tive o privilégio de fazer parte do cotidiano de um dos protagonistas daquela época, o grande sax-tenor Sandoval Dias.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
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