"Que saudade da professorinha que me ensinou o beabá!"
Lá estava ela, na entrada da sala de aula, à minha espera. Meia dúzia de degraus me separavam da professorinha e do início da minha alfabetização. O sorriso dela me acalmou e me deu a certeza de que eu era bem vindo.
O ano era o de 1951, ano seguinte ao do fracasso do nosso futebol diante dos uruguaios. Isto me acompanhou durante toda a infância e boa parte da minha adolescência. A perda da Copa de 50 passou a ser referência de uma época.
E lá estava eu, um menino encabulado, frente ao portal da sua alfabetização, com sua pasta de couro guardando apenas um caderno, um lápis com borracha e um apontador. A merenda estava acomodada num canto da pasta, protegida por um guardanapo de pano que escondia um pão com ovo e uma maçã.
D.Palmira deu-me as boas vindas, e eu logo senti que ia ser fácil aprender a ler com aquela professora de voz mansa e gestos suaves. O Colégio tinha nome do santo xará dos meus avós, Santo Antônio, e ficava na rua Baturité, uma ruela pequena no bairro de Bonsucesso. Ali estudei até concluir a 4ª série, ganhando medalhas a cada final de ano, que eram colocadas no meu peito pela professorinha, orgulhosa do seu melhor aluno.
Aprendi tudo com muita facilidade, lendo e escrevendo, fazendo caligrafia e tirando nota 10 nos ditados e interpretações.
As carteiras eram duplas e as pastas ficavam pousadas numa prateleira debaixo da mesa, onde muitos iam em busca de cola, quando era dia de prova. Sentavam dois alunos em cada carteira, e era um tal de espichar os olhos na tentativa de saber o que o colega havia respondido para esta ou para aquela pergunta. Alguns esticavam a mão por baixo da carteira, tentando abrir o livro, e se eram pegos ficavam sem a prova e com uma nota zero na caderneta.
O cheiro do couro da minha pastinha humilde, eu ainda o sinto, como naqueles primeiros dias de aula, quando tudo era novo na minha vida e eu não tinha noção da importância que aqueles momentos representariam para o meu futuro
No recreio, os meninos de um lado e as meninas do outro brincavam de casamento japonês onde ,ora uns, ora outros, buscavam criar um casal ideal, escolhendo com quem gostariam de casar. As meninas eram muito mais ousadas, e os meninos meio encabulados se deixavam arrastar pelo braço das sedutoras conquistadoras.
Como disse o nosso saudoso Ataulfo Alves, eu fico a me perguntar "onde andará Mariazinha, meu primeiro amor, onde andará?" Não importa o nome dela, todos nós tivemos uma Mariazinha, que foi o nosso primeiro amor. Terezinhas, Vanices e Marlenes atravessaram o meu caminho de menino, moldando a figura da Mariazinha, exaltada na canção do Ataulfo.
Namoro mesmo, nem pensar! Suspiros, coração apertado, um gaguejar incômodo, eram sinais suficientes para se ouvir o coro :"tá namorando". Garoto nenhum assumia o seu amor, muito menos que estava namorando. Os amores eram platônicos, mas tão platônicos, que não se tocava nem na mão da musa inspiradora dos nossos sonhos.
A nossa literatura romântica ficava restrita ao livro escolar "Meu Tesouro" e às revistas Vida Infantil e Vida Juvenil, com seus caprichados almanaques de final de ano. Os Sobrinhos do Capitão eram mais admirados por aqueles guris mais safados e moleques, que adoravam as confusões provocados pelos heróis da história. O meu gosto se voltava mais para o Pituca, um macaco levado mas não muito, e Lourolino e Remendado, um papagaio esperto e uma tartaruga molenga, mas cheia de macetes.
Os adultos da época liam "O Cruzeiro", que trazia a figura cruel e tirana, mas simpática e maliciosa, do inesquecível Amigo da Onça. As crianças encontravam nas páginas da revista os maiores escândalos e os comentados crimes da sociedade, como o casamento do homem branco com a índia Diacuí e o badalado crime do Sacopã, envolvendo o tenente Bandeira. Os nossos olhinhos se arregalavam com as fotos sem censura, mostrando os seios à mostra da Diacuí e os detalhes do romance proibido do tenente acusado de assassinar sua amante Marina.
A literatura infantil ficava por aí, pelo menos nos meus dois primeiros anos escolares, enquanto a pelada na rua depois das aulas era o lazer imperdível do dia-a-dia. A vida transcorria como se tudo se repetisse, num melancólico e insosso cenário de subúrbio, que nos dias de hoje receberia toda sorte de crítica de psicólogos e pedagogos, mas que para a nossa meninice era o Paraíso na Terra.
Todo esse enredo que fazia parte de um roteiro repleto de magia tinha, como tudo que acontecia na Era do Rádio, o seu fundo musical. Do rádio lá de casa, ouvia-se a vedete Virginia Lane cantando Sassaricando, com seu comentário apimentado sobre os velhos na porta da Colombo que estariam sassaricando. Um escândalo ! Do rádio do vizinho, chegava a voz de Marlene, numa prévia para o carnaval de 1952, abrindo a voz para anunciar que lá vem Maria com uma lata d'água na cabeça.
O tempo passava e a gente nem notava, só pensando no dia seguinte, que certamente seria melhor do que o de hoje, que já foi muito bom. Assim as coisas aconteciam na Era do Rádio, com músicas de fundo e uma insustentável leveza no ar...
domingo, 5 de outubro de 2008
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Um comentário:
Nossas infâncias foram semelhantes, no mesmo bairro, andando pelas mesmas ruas.
Também lembro do primeiro dia de aula, quando minha mãe chorou ao me deixar na escolinha da Rua Cardoso de Morais - Colégio Almirante Barroso. Eu não gostava de estudar, muito menos era a melhor aluna da classe !
Muito tímida e romântica, sonhava com príncipes encantados e vestidos de Cinderela, com bosques misteriosos e montanhas mágicas.
Mundo irreal, muito distante do suburbano bairro do Bonsucesso...
Obrigada pelas deliciosas recordações.
Beijo
Flora Maria
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